«O Código Da Vinci»: quando o objectivo é vender

Se a promoção da “Paixão de Cristo de Mel Gibson” se fazia com a frase “o filme mais polémico do ano”, a Bertrand Editora fez do “Código Da Vinci”, último romance de Dan Brown, “o livro mais esperado do ano”.

Falar sobre Jesus Cristo e a Igreja Católica, goste-se ou não, tem este efeito mediático. De vez em quando surge uma revelação definitiva sobre a vida de Jesus e sobre a “falsidade” que se esconde por detrás da Igreja Católica (há sempre um "segredo que a Igreja ocultou" nestas histórias). Dan Brown traz a última... até à próxima.

Tratando-se de um romance, concebido claramente para causar escândalo e gerar lucros aos autores/editores, as teorias apresentadas por Brown neste livro, - que é, de facto, um best-seller impressionante -, não surpreendem: Jesus foi casado com Maria Madalena, que estava grávida quando Cristo foi crucificado. Os descendentes daquela criança ainda sobrevivem e mantêm-se no anonimato protegidos pelo Priorado de Sião, que é também o guardião da verdadeira fé em Jesus e Maria Madalena, baseada na teoria do sagrado feminino. A novela portanto consiste numa corrida em demanda do Santo Graal, mas em vez de buscar o cálice da Última Ceia, procura principalmente os restos mortais de Maria Madalena.

A tese mais “polémica” do autor é sobre a tela "A Última Ceia", de Leonardo Da Vinci, afirmando que quem está sentada à direita de Jesus é Maria Madalena e não São João (provavelmente ocupado a tomar apontamentos para o que seria o seu Evangelho e sem tempo para comer).

Tudo isto estava já contado, desde os anos 70, nas obras de Gérard de Sède ou de Maurice Guinguand (em torno das questões de Gisors e de Rennes-le Château, e da filiação templária) ou, mais recentemente, 1982, em “O Sangue de Cristo e o Santo Graal”, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln.

Ficção

Dan Brown, o autor, adverte que o livro parte de dois factos reais: a existência do Priorado do Sião, uma “sociedade secreta europeia fundada em 1099” e de que teriam feito parte figuras bem conhecidas como Newton, Botticelli, Victor Hugo, Jean Cocteau e Leonardo Da Vinci; e o Opus Dei. Toda a trama do romance vai girar em torno do combate feroz entre estas duas organizações.

Segundo Brown, todos os documentos secretos citados e as descrições de obras de artes, edifícios e rituais secretos são exactos. O facto de o autor falar num “monge” do Opus Dei, contudo, é por si só uma boa lição sobre a capacidade de pesquisa de Brown, que também apresenta um Papa que lança ao Tibre as cinzas dos Templários que ele exterminou, exactamente na época em que o Papado estava no desterro de Avinhão.

Talvez por isso seja preciso ter mais atenção quando o mas o autor faz afirmações sobre a História, dentro da novela, apresentando-as como factos consumados e amplamente aceites. Vale a pena olhar para um mapa ou para um manual de História, para conferir.

São João e os apócrifos

O autor do “Código Da Vinci” olha para os textos bíblicos como se fossem relatos jornalísticos, numa interpretação literalista que caiu em desuso há muitos anos.

“Surge no livro o problema da Ceia, que no Evangelho de São João não é, claramente, uma Ceia Pascal. O evangelista apresenta Jesus como o Cordeiro Pascal e este é um texto carregado de simbolismos de ordem teológica, retratando uma Ceia de adeus”, afirma o Pe. Joaquim Carreira das Neves, especialista em Sagrada Escritura.

Dan Brown utiliza ainda dados dos Evangelhos chamados “apócrifos”, considerados na obra como anteriores aos “canónicos” (Marcos, Mateus, Lucas e João), para partir à procura de uma imagem “original” de Jesus (profeta, humano, mas não Deus), facto que não constitui uma novidade na história da Igreja Católica.

O Pe. Carreira das Neves explica que a análise aos textos evangélicos “procura sempre o chamado Evangelho fundamental”.

“Mesmo na Igreja primitiva existia a ideia de que teria existido uma fonte comum aos Evangelhos e cada um procurava o Evangelho primitivo. Apesar de não se ter descoberto nada de semelhante, os nossos Evangelhos mostram que há ali várias compilações, como as sentenças da Quelle que aparecem em Mateus e Lucas”, refere à Agência ECCLESIA.

Esta constatação não significa, contudo, que todos os dados apresentados no “Código Da Vinci” tenham o mesmo valor. “Uma vez que a vida de Jesus tem muitos espaços em branco, eles vieram a ser preenchidos pelos apócrifos e o nosso leitor de hoje que anda à procura desses dados lê com agrado histórias mais ou menos fantasiosas”, afirma Carreira das Neves.

Os estudos bíblicos, que evoluíram significativamente desde o séc. XIX, não deixam margens para dúvidas sobre a datação dos “apócrifos”, sobretudo os de origem gnóstica, nascidos depois do ano 150 e após a redacção dos Evangelhos Canónicos, que decorreu entre os anos 70-100.

Mulheres e interpretações teológicas

O papel das mulheres na construção da Igreja primitiva é outro dos destaques do “Código Da Vinci”. Para o Pe. Carreira, é importante lembrar que “Maria Madalena e as mulheres tinham uma certa importância na comunidade primitiva”.

“Algumas correntes da Igreja primitiva davam muito valor à questão da iniciação dos escolhidos, sobretudo nos escritos gnósticos, e aí Madalena era a mais iniciada”, acrescenta. Nos apócrifos “O Evangelho de Filipe” e “O Evangelho de Maria”, Madalena é apresentada como sendo maior do que Pedro e os outros apóstolos, ideia que inspirou Dan Brown.

A Igreja Católica acabou por seguir uma posição oficial diferente desta linha gnóstica e os apócrifos acabaram por não ter qualquer importância na vida das comunidades.

O valor teológico do “Código Da Vinci” é para o Pe. Carreira das Neves “nulo”.

“O autor diz claramente que isto é um romance, como fez o Saramago, mas não deixa de afirmar que vem dar a última palavra sobre o um mistério nunca antes revelado, o do Santo Graal. Apesar dessa intenção, limita-se a ser um romance policial”, assegura.

“O problema é muito simples: os Evangelhos canónicos são prioritários, cronologicamente, em relação aos apócrifos, ao contrário do que Brown afirma. Estamos na presença de uma pura fantasia, que não resiste a um estudo sério”, acrescenta.

Agência Ecclesia//6 de Maio de 04