“Ao fazer memória de São Josemaria renovai a vossa profunda filiação divina”

Homilia de D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, na festa litúrgica de São Josemaria. «A cultura contemporânea deixa-se atrair por quem comunica a Palavra de Deus, meditada na intimidade familiar de uma relação filial e transmitida com a simplicidade contagiante do testemunho».

“A multidão estava aglomerada em volta de Jesus, a ouvir a palavra de Deus”

No clima de preparação do próximo Sínodo sobre a Palavra de Deus e ao celebrar a festa de São Josemaria Escrivá, fiel instrumento da força de Deus, filho unido por Cristo ao projecto do Pai, formador de agentes operativos entregues à transformação da sociedade, saboreemos a Palavra aqui proclamada.

1. Ouvir Jesus, escutar a sua pregação era entrar em perfeito conhecimento e sentimento com a Palavra de Deus. A atracção, a irradiação e a verdade das palavras de Jesus partiam da sua relação com o Pai. Nós não conhecemos directamente a palavra de Deus. Só através dos profetas. Quanto maior for a relação desse profeta com Deus tanto mais viva e exemplar será a palavra. Jesus é ouvinte perfeito e portador da palavra de Deus.

Os que procuram Jesus, que se aglomeram à sua volta entram no processo de comunicação de Deus e fazem-se portadores da vida nova, da graça vivida, da libertação do mal. A palavra de Deus é o lugar de onde Deus se manifesta fora de si como Deus vivo e misericordioso.

O evangelista não nos informa sobre conteúdo da pregação de Jesus. Apenas informa como havia tantos a querer escutar a Palavra de Deus, que era o próprio Cristo. Relata contudo a palavra dita por Jesus a Simão e a resposta sábia, entre revelar-se especialista da pesca e mostrar-se discípulo. Por isso termina: “já que o dizes, lançarei as redes”, à tua palavra, obedecerei. A cena da pesca é por isso uma metáfora, que expressa a força prodigiosa da Palavra de Deus, a eficácia abundante das orientações de Deus, a surpresa admirável da vontade de Deus.

2. Esta consonância com Deus vem do acolhimento atento e disponível da sua Palavra. Cria-se uma relação familiar entre nós e Deus em Cristo, por meio do Espírito Santo, como ouvimos na carta aos Romanos (8, 14-17). Somos conduzidos a uma relação filial com Deus pelo Espírito Santo. Como o povo de Israel foi liberto da escravidão do Egipto, os crentes são livres do domínio da lei, do pecado e da morte, que os afastaria de Deus, e entram na familiaridade divina. 

O dom da filiação divina coloca-nos na condição de absoluta liberdade, a liberdade dos filhos de Deus, capazes de exclamar com ternura e intimidade: “abba, Pai”. Nesta condição não há temor porque a actuação do Espírito garante e testemunha que somos verdadeiramente filhos. O sermos em Cristo, pela acção do Espírito Santo, exprime-se na novidade de uma filiação. Esta filiação espiritual abre para uma herança com Cristo. Participamos da morte de Cristo, comungamos com os seus sofrimentos, e somos configurados com a sua ressurreição, beneficiamos da sua glória.

A radicalidade de uma entrega fiel à vontade de Deus nasce desta graça do Espírito Santo que une o centro do nosso ser ao Pai, em oração simples e confiante, cordial e luminosa, sem medos. A vida de filhos tão queridos é impelida, com autêntica liberdade a ser instrumento nas mãos do Pai.

3. Poderão seres humanos tão frágeis e débeis ser servos da Palavra de Deus e realizadores do plano do Pai, da obra de Deus? O trecho do Génesis, proclamado nesta celebração, de modo realista, sustenta a necessidade do ser humano para cuidar da obra de Deus. O homem foi feito do húmus, do terreno, do solo, por acção de Deus. O artista divino sopra no pó o hálito de vida. O barro anima-se, recebe a vida na sua fragilidade precária. O próprio pó da terra transforma-se em jardim, em paraíso para o ser humano. Deus faz um oásis a partir da estepe desolada. Ao ser humano, Deus entrega a missão de guardar e cultivar, de servir este jardim.

4. A sociedade hodierna, a cultura contemporânea, tem sede de humildes profetas de Deus, deixa-se atrair por quem comunica a Palavra de Deus, meditada na intimidade familiar de uma relação filial e transmitida com a simplicidade contagiante do testemunho. Os desafios de uma presença cristã em todos os sectores da vida pública são exigentes de qualidade, requerem vigor espiritual, vínculo forte com Deus, convicção ardente, fidelidade à Igreja.

Ao fazer memória de São Josemaria renovai a vossa profunda filiação divina, deixai-vos impelir por Deus para no concreto das situações fazer respeitar a liberdade dos seus filhos. Reavivar a consciência da força prodigiosa da Palavra de Deus é declarar como Simão, com toda a pobreza dos seus limites e como todo o fervor da sua ligação a Cristo: “à tua palavra, lançarei as redes”.

Discernir a hora, escolher as situações, adaptar a rede, identificar-nos-á com os sofrimentos de Cristo, mas o Espírito Santo também nos fará participar da glória prometida aos que entregam a vida intensamente a ser instrumentos da Obra de Deus.

Carlos A. Moreira Azevedo

Bispo auxiliar de Lisboa