“Da Rússia com Amor”

Artigo de José Antonio Senovilla, vigário do Opus Dei na Rússia, no Diario Jaén em que relata as suas recordações de Jaén, a sua intensa vida sacerdotal e o trabalho apostólico das pessoas do Opus Dei nesse país.

José Antonio Senovilla junto do prelado do Opus Dei, D. Javier Echevarría, em novembro de 2014 em Moscovo.

Em Jaén, a cidade em que nasci e onde regresso sempre que posso, como agora, aprendi da Rússia aquilo que habitualmente um rapaz aluno dos Maristas pode saber sobre o maior país do mundo: a Rússia ocupa mais ou menos um sexto do território do planeta. No colégio aprendi algo da sua história: os czares; a revolução que deu origem à União Soviética...

Nos meus anos de estudante ouvi alguma da sua música (Tchaikovsky, Rachmaninov, Borodin e muitos outros) e, sobretudo, li bastante da sua profunda e triste literatura: quanto ajuda a perceber-se a si próprio, a particular história de Ródia Roskólnikov e de Sónia, verdadeira heroína em “Crime e Castigo”; ou a de Natasha em “Guerra y Paz”, ou Anna em Karénnina, ou a do jovem Aliósha em Karamazov!

A Rússia é um país rico em matérias-primas (num país tão extenso, pode encontrar-se quase tudo), mas sobretudo na sua gente: gente acostumada a sofrer, vivendo em condições muitas vezes extremas, de clima, de invasões, de guerras. As pessoas aqui gozam de uma dignidade que impressiona, não relacionada com o que têm, mas com o que são e se sabem.

As pessoas aqui gozam de uma dignidade que impressiona, não relacionada com o que têm, mas com o que são e se sabem

Ao terminar o Colégio, fui estudar para a Universidade: nessa altura em Jaén havia apenas a Escola Normal de Magistério, a Escola de Peritos e pouco mais. Estudei Direito em Sevilha e depois em Granada. Ao terminar o curso, encontrei trabalho em Almería, no mundo empresarial, e aí passei dez anos muito intensos, muito felizes.

Nessa altura Deus já me tinha chamado ao Opus Dei. Tive sempre a segurança de que Deus esperava algo de mim, até que através de um companheiro de turma conheci as atividades para jovens que o Opus Dei organizava numa pequena moradia da rua Arquitecto Berges, a cinco minutos a pé da minha casa (isto, aqui em Moscovo, soa a algo assombroso: a cinco minutos a pé da nossa casa nem sequer a estação do metro!).

A chamada representou uma rutura dos meus próprios limites: uma coisa é que a mim me ocorra uma “loucura” e outra, muito diferente, que seja um convite que vem “caído do Céu”. Por isso, quando me preguntaram se queria ir para a Rússia começar o trabalho do Opus Dei, sem duvidar disse que sim...

E foi ali que, num quente dia 28 de junho, me preguntaram se estava disposto a ir para a Rússia: “O idioma é difícil, o clima é duro... Pensa bem

Mas dei talvez um salto demasiado grande na minha biografia particular: dez anos como advogado no mundo empresarial em Almería, outros dez em Granada colaborando nas tarefas de formação e direção no Opus Dei... e, de repente, oh, surpresa!, o prelado do Opus Dei — que me conhece muito bem e me ama muito! — perguntou-me: “Meu filho, estás disposto a que te ordene como sacerdote?”. E assim, depois de terminar os estudos e de me ordenar em Roma, regressei a Sevilha para uns anos de prática. E foi ali que, num quente dia 28 de junho, me perguntaram se estava disposto a ir para a Rússia: “O idioma é difícil, o clima é duro... Pensa bem”. Respondi que sim. Recordo que naquele dia em Sevilha fazia calor, uns 45º, e pela noite, já na cama, com a emoção da aventura que começa, fiz as contas: repara bem rapaz, vais passar dos 45º acima de zero de Sevilha para os 30 abaixo de zero de Moscovo: a diferença são... 75 graus! Mas Deus fez o homem muito adaptável ao meio...

O meu amigo Paco, companheiro de estudos em Granada, que me conhece bem, dizia-me: “Olha lá, tu estás um bocado louco: primeiro fazes-te padre a “meio da carreira” e depois vais para a Rússia. Tens a certeza?”. Achei piada à pergunta, porque nunca me tinha ocorrido “não ter a certeza”: a ideia não era minha, mas de cima. E eu, como o meu conterrâneo de Arjonilla, García Morente, tinha a certeza de uma coisa: sempre cuidou de mim uma mão amorosa. Se Deus mo pedia, Ele se encarregaria... Recordei isso muitas vezes...

E fomos para Moscovo: com muito pouco para começar, sem casa, sem falar russo... Ao princípio viemos cinco: do México, de Itália, de França (através da Finlândia), da Lituânia, de Espanha. E já cá estamos há dez anos

E fomos para Moscovo: com muito pouco para começar, sem casa, sem falar russo... Ao princípio viemos cinco: do México, de Itália, de França (através da Finlândia), da Lituânia, de Espanha. E já cá estamos há dez anos: os cinco iniciais, mais os que foram chegando (do Chile, mais de Espanha), mais os primeiros russos e ucranianos do Opus Dei... É muito bonito! Perguntam: “Olha lá, tu vivias mal em Espanha, para te vires para a Rússia? (muitos o que queriam era sair da Rússia para ir para Espanha!)”: “Não, não é por isso... É... por ti!”.

Nesses nove anos feitos de aventura russa vivemos muitas histórias e fizemos muitos quilómetros. No verão passado estive com um grupo de voluntárias num acampamento solidário em Sajalín, ao norte do Japão: a sete mil e quinhentos quilómetros a leste de Moscovo. Aí as voluntárias ajudavam crianças e idosos e eu ajudava o pároco, um polaco muito valente que passa lá o ano sozinho, com o seu povo: todo o ano sozinho... De Moscovo viajamos para muitas cidades, onde nos pedem ajuda. Recordo a minha primeira viagem à Sibéria. Uma rapariga de Omsk veio viver para a residência da Obra em Moscovo: procurava a Igreja Católica. E pediu-me para ir batizar o seu avô, um velhinho “soviético”, bom como só ele, de origem alemã, dos deportados por Stalin para a Sibéria: Vladimir, vendo o exemplo da sua neta Dasha queria batizar-se... e não podia sair de casa! E lá fomos: foi um batismo muito bonito.

Viajamos muito a São Petersburgo, porque estão ali uns padres heróicos, que há catorze anos dão a vida e a saúde para levar para a frente uma paróquia com uma gente muito simpática, na cidade “mais bonita da Rússia”

Viajamos muito a São Petersburgo, porque estão ali uns padres heróicos, que há catorze anos dão a vida e a saúde para levar para a frente uma paróquia com uma gente muito simpática, na cidade “mais bonita da Rússia”: a cidade de Pushkin, a antiga “Aldeia dos Czares”... Acabam de voltar a consagrar o altar e a igreja, depois dos comunistas lha terem roubado para fazer uma sala de concertos. Se forem a São Petersburgo, não deixem de os visitar: são pessoas muito simpáticas e acolhedoras.

Para que tenham uma ideia, além da cidade de Pushkin, atendem a República de Komi, junto ao Círculo polar ártico, vinte e três horas de comboio a norte de Moscovo, com uma extensão equivalente a duas vezes a Espanha e com temperaturas de 40º C abaixo de zero...

Para que tenham uma ideia, além da cidade de Pushkin, atendem a República de Komi, junto ao Círculo polar ártico, vinte e três horas de comboio a norte de Moscovo, com uma extensão equivalente a duas vezes a Espanha e com temperaturas de 40º C abaixo de zero

O Prelado do Opus Dei tem-me muito carinho e brinca comigo: “Meu filho, tens um país pequeno para, ainda por cima, ires ao do lado!”. É que desde há sete anos que nos deslocamos todos os meses à Ucrânia, para atender as pessoas de lá que querem receber formação cristã que lhes podemos oferecer: na Ucrânia, como na Rússia, impressiona-os muito a mensagem de São Josemaría: podes ser santo no teu sítio.

A Ucrânia é um país aparte. Que gente tão boa! Parecem de Jaén! Mal chego a Kiev e coloco o cartão no telefone começam a chegar telefonemas de todo o país: tens um bocadito para falarmos? Vou ver-te! E vêm de Járkov, de Jersón, de Odéssa, de Lvov, de Ternópol... Quinhentos, setecentos quilómetros de ida e outros tantos de volta, só para poderem ter um pouco de conversa, de direção espiritual com um sacerdote do Opus Dei... E vêm católicos de rito latino e de rito oriental e ortodoxos.

Desde há sete anos que nos deslocamos todos os meses à Ucrânia, para atender pessoas de lá que querem receber formação cristã que lhes podemos oferecer: na Ucrânia, como na Rússia, impressiona-os muito a mensagem de São Josemaría (...). E vêm católicos de rito latino e de rito oriental e ortodoxos

É preciso rezar pela paz nesse país de gente fantástica. No ano passado, o meu grande amigo Petró, Arcebispo de Kiev (falecido pouco depois ainda muito novo) esteve em Jaén, convidado pelo nosso Bispo Ramón e pela Irmandade da Capela de Santo André, para rezar à Virgem da Capela pela paz na Ucrânia... E assim vamos, pouco a pouco...

Termino, porque senão isto seria inesgotável. Há uns dias Deus, que me ama muito, deu-me um presente fantástico e inesperado. Pude atender, com outro sacerdote que vinha de Almería, um grupo de raparigas de Jaén e de outras províncias andaluzas, que vinham à Ucrânia ajudar num campo de trabalho com crianças em Shitómir, uma cidade de passagem entre Kiev e Cracóvia; elas a seguir iriam ali encontrar-se com o Papa.

Foram dez dias inesquecíveis. Que gente! Que corações mais abertos e mais generosos! As pessoas dali estavam impressionadíssimas de que não tivessem ido de férias para a praia e tivessem, antes, ido à Ucrânia atender crianças de famílias muito humildes e ajudar na Catedral.

E eu pensava: “Jesus, que bom que és! Deixei a minha terra e aqui estão as filhas de amigos meus, de companheiros meus de colégio e de faculdade, derramando imenso carinho em pessoas que nem conhecem nem voltarão a ver”

Foi tal a sintonia entre as “jaeneiras” e os ucranianos, que no domingo, na Missa na própria Catedral, as aplaudiram e, terminada a Missa, que foi em ucraniano e em espanhol, não paravam de lhes dar beijos e presentes. E eu pensava: “Jesus, que bom que és! Deixei a minha terra e aqui estão as filhas de amigos meus, de companheiros meus de colégio e de facultade, derramando imenso carinho a pessoas que não conhecem nem voltarão a ver”. É como se o Senhor me dissesse: “Mandei-te para longe; mas, de vez em quando, deixo-te desfrutar com os teus conterrâneos”.