O rosto de Jesus

"Que procure o Teu rosto, que aprenda a encontrá-lo e a mostrá-lo, que saiba descobrir-Te nas coisas correntes da minha vida, que me aperceba realmente de que és Tu", diz o autor deste artigo.

Homens da Galileia, porque estais aí parados olhando para o céu? [1]. Os olhos dos Apóstolos tinham ficado fixados no local por onde Jesus tinha partido... Um anjo teve que os advertir de que a vida continuava.

O mensageiro de Deus não pretendia diminuir o interesse daqueles homens pelo seu Mestre, mas talvez fazê-los pensar que a partir desse momento teriam que aprender a vê-l’O de outra maneira, a encontrarem-se com Ele, com o Seu olhar, nos outros e nas coisas correntes da vida.

São Paulo entendeu aqueles desejos dos Apóstolos, porque também ele desejava estar com Cristo e vê-l’O cara a cara[2]. Mas, a ter que escolher, preferia continuar o tempo que Deus quisesse, contemplando-O como num espelho e difusamente[3], se isso pudesse ajudar outros a viver nessa Luz[4].

Aos destinatários da sua missão apostólica, aconselhava com a força do seu exemplo e da sua palavra que, enquanto estivessem neste mundo, mantivessem o olhar fixo no Céu, onde está Cristo: se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus [5].

Quæ sursum sunt quærite! [6]. Procurai as coisas do alto! Queremos fazer nosso esse grito, mas necessitamos de aprender. Em tantas ocasiões surpreendemo-nos com o olhar raso, excessivamente centrado em coisas passageiras.

Falta-nos uma maior acuidade para descobrir o papel que Cristo desempenha em cada acontecimento da existência. amamos este mundo, que é o nosso, o lugar onde nos encontramos com Deus[7] e desejaríamos adquirir uma maior facilidade para nos apercebermos do olhar de Jesus Cristo enquanto nos ocupamos das nossas tarefas habituais. Queríamos também que outros pudessem ver Cristo em nós; entusiasma-nos a maravilhosa possibilidade de tornar presente o rosto de Jesus aos nossos amigos.

Vultum tuum, Domine, requiram! [8]. Procurarei, Senhor, o Teu rosto! Senhor – dizemos-Lhe – que procure o Teu rosto, que aprenda a encontrá-lo e a mostrá-lo, que saiba descobri-lo nas coisas correntes da minha vida, que me aperceba realmente de que és Tu.

Talvez oiçamos aquele aviso de São Josemaria: Esse Cristo, que tu vês, não é Jesus. – Pode ser, quando muito, a triste imagem que podem formar os teus olhos turvos... – Purifica-te. Clarifica o teu olhar com a humildade e a penitência. Depois... não te hão-de falta as luzes límpidas do Amor. E terás uma visão perfeita. A tuaimagem será realmente a sua: Ele![9]

Os Evangelhos aludem, em diversas ocasiões ao olhar de Jesus Cristo. Um olhar benévolo e afetuoso, comovedor e comovido, um olhar profundamente conhecedor, que penetra a intimidade, um olhar que ensina e corrige, que move ao arrependimento e chega a provocar um ímpeto de generosidade [10].

Talvez tenhamos procurado muitas vezes representá-lo na nossa oração, com a intenção de descobrir como podemos encontrá-lo e fazê-lo presente na nossa vida corrente. Alguns personagens que se cruzam com Jesus nas horas da Paixão talvez nos possam ajudar a avançar na concretização deste desejo.

No caminho da Cruz três pessoas têm uma particular relação com o rosto de Cristo; só duas o procuram, mas três encontram-no. Das três podemos aprender; cada uma delas sugere um ensinamento diferente sobre o modo de dar forma ao desejo de ver o rosto de Jesus.

COM SANTA MARIA, UM SÓ CORAÇÃO Mal se levantou Jesus da Sua primeira queda, encontra Sua Mãe Santíssima, junto ao caminho por onde Ele passa[11]. O Evangelho nada nos diz desse encontro, mas o silêncio da Escritura não fez mais do que estimular a imaginação dos cristãos ao longo dos séculos. O nosso Padre representa-o assim: Com imenso amor olha Maria para Jesus, e Jesus olha para Sua Mãe; os Seus olhares encontram-se, e cada coração verte no outro a Sua própria dor[12].

O amor é tão intenso que basta o encontro dos olhares para que cada um saiba que conta com o outro, que pode verter n’Ela, n’Ele, a Sua imensa dor, porque aquele coração é capaz de o aceitar. No meio desse sofrimento, têm o profundo consolo de se saberem acompanhados, compreendidos.

A alma de Maria fica mergulhada em amargura, na amargura de Jesus Cristo[13]. A amargura que enche a alma de Maria é a do seu Filho, como de Maria é a amargura que enche a alma de Jesus. É tão forte a união dos Seus corações que a dor de um está feita do sofrimento do outro; assim se apoiam e mutuamente se mantêm.

Quem nos dera a nós uma identificação assim com os sentimentos de Cristo! Ficamos – é certo – muito longe, mas desejamo-la ardentemente. Sabemos que se avançarmos por esse caminho não pouparemos dores nesta vida, porque toda a existência humana as traz consigo, mas teremos sempre uma luz para as enfrentar, nunca nos faltará uma base firme para não sucumbir, para as encarar com serenidade.

Simeão tinha profetizado à Virgem que uma espada trespassaria a sua alma[14]. Desde o anúncio da Paixão, a ferida da espada não abandonará nunca a Mãe de Jesus. Ela terá sempre presente que só a podem ofender através das afrontas feitas ao seu Filho; tem consciência de que todo o sofrimento, e também toda a alegria, só pode ter a sua causa em relação com Ele.

Nossa Senhora ensina que nas amarguras e nos pequenos desgostos – profissionais, familiares, sociais... – podemos procurar e descobrir o rosto de Cristo; e, como consequência, estaremos cheios de paz inclusivamente no meio da dor.

VERÓNICA, UM CORAÇÃO BOM

Conta uma tradição da Igreja que, um pouco mais à frente, uma mulher sai ao encontro do Senhor com a intenção de Lhe limpar o rosto. É o único facto que conhecemos da Verónica, pois é conhecida com este nome.

Talvez nunca tivesse pensado conscientemente nesse desejo – ver a face de Jesus Cristo – e inclusive se lhe tivesse ocorrido, pensaria que o motivo pelo qual procurava, agora, esse rosto era mais simples: pretendia apenas ter uma atenção com aquele Homem que sofria. No entanto, esta mulher, que nem sequer aparece nos Evangelhos, deu um nome próprio ao desejo de contemplar a face de Deus.

Ditosos, porém os vossos olhos, porque vêem (...). Em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não o viram [15]. Se se podem aplicar especialmente a Verónica estas palavras, se ela realizou essa aspiração que encheu a alma de tantos santos ao longo da história, foi pela sua bondade simples, porque o seu coração de mulher boa não se deixa «contagiar pela brutalidade dos soldados, nem imobilizar pelo medo dos discípulos»[16], não se detém diante da oportunidade de prestar um pequeno serviço. E esse «ato de amor imprime no seu coração a verdadeira imagem de Jesus»[17].

O rosto do Deus feito Homem fica gravado naquele pano, sim; mas fica sobretudo gravado nas suas entranhas de bondade. «O Redentor do mundo dá a Verónica uma imagem autêntica do Seu rosto. O véu, sobre o qual fica impresso o rosto de Cristo, é uma mensagem para nós. Diz-nos, de certo modo: eis aqui como todo o ato bom, todo o gesto de verdadeiro amor para com o próximo aumenta em quem o realiza a semelhança com o Redentor do mundo. Os atos de amor permanecem. Qualquer gesto de bondade, de compreensão e de serviço deixa no coração do homem um sinal indelével, que o assemelha um pouco mais com Aquele que “Se aniquilou a Si mesmo tomando a forma de servo” (Fil 2,7). Assim se forma a identidade, o verdadeiro nome do ser humano»[18].

Não será esta uma maneira acessível de procurar o rosto de Jesus Cristo? Não é também um modo de O tornar presente entre os que nos rodeiam?

É possível que na vida tenhamos ocasião de prestar grandes serviços a outras pessoas; que possamos renunciar a algo valioso para ajudar os outros. Mas, apresentem-se ou não essas oportunidades, procuremos viver quotidianamente com um coração bom, capaz de se compadecer das penas das criaturas, capaz de compreender que, para remediar os tormentos que acompanham e tanto angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade; todas as outras consolações só servem para nos distrair por um momento e deixar depois amargura e desespero[19].

Muitas vezes o que mais ajuda as almas a descobrir o olhar amoroso do Senhor é precisamente ver como os Seus discípulos, no meio das suas limitações, sabem aperceber-se do que os outros necessitam: são capazes de descobrir esses detalhes que, se se passassem por alto, ninguém se queixaria; mas que, pelo contrário, quando se recebem, agradecem-se de todo o coração.

Se com sentido sobrenatural agimos deste modo, realizamos – quanto é factível nesta vida – o desejo de contemplar o rosto de Jesus Cristo. E ao mesmo tempo facilitamos que outras pessoas se encontrem com Ele.

Pode acontecer que não O notem imediatamente e necessitem um certo tempo para descobrir o Senhor, mas não deixarão de se aperceber, desde o primeiro momento, que há algo especial naqueles que os tratam com uma bondade tão simples.

Se queremos fazer descobrir a outros o semblante amabilíssimo do Mestre, procuremos distribuir amabilidade, serenidade, paz, paciência, respeito, cortesia, carinho; também quando não esperamos ser correspondidos; se queremos ver nos outros o rosto de Jesus, acerquemo-nos deles com um coração simples, um coração que valoriza e admira e ama os pais, os filhos, os amigos um por um; que descobre como cada um deles reflete, a seu modo, a bondade de Deus.

SIMÂO DE CIRENE, UM ENCONTRO COM A CRUZ

Os Evangelhos sinóticos falam-nos de um terceiro personagem que se encontra com Jesus Cristo no caminho do Calvário. Santa Maria e a Verónica procuraram-no, foram ao Seu encontro por iniciativa própria. Simão de Cirene, não. Simão foi forçado a levar a Cruz[20]. A própria expressão que utilizam os evangelistas indica que, talvez, tenha havido resistência inicial.

É bem compreensível; ninguém gosta que o obriguem a carregar com uma cruz alheia, e ainda menos depois de um duro dia de trabalho. São Marcos dará a entender que os filhos deste homem eram conhecidos como cristãos[21]: Tudo começou por um encontro inopinado com a Cruz[22]. Uma coisa extraordinária que teve a sua origem num acontecimento aparentemente desafortunado.

A mudança de atitude do Cireneu não deve ter sido repentina, mas gradual, e não é arriscado supor que teve a ver com o rosto de Jesus Cristo. Ele pensava que se tratava de um malfeitor, mas aquele olhar amável, agradecido, pacífico, desarmou-o. Ao princípio desgosta-se porque simplesmente; depois olha descobrindo que partilhar a Cruz com esse condenado vale a pena.

Aquilo que ao princípio parecia um obstáculo que se interpunha entre ele e o seu descanso, foi progressivamente transformado pelo rosto daquele Homem numa oportunidade única, que acabou por mudar a sua vida.

Para ele, como para todos os cristãos, a Cruz converteu-se no sinal distintivo da sua fé, no instrumento da salvação; numa realidade redentora, inseparável da missão de Cristo. Através dos séculos, os cristãos olharão a Cruz com carinho e esperança, que deveria estar no centro da sua vida e que, pelo mesmo motivo, «deveria estar no centro do altar e ser o ponto de referência comum do sacerdote e da comunidade que ora»[23].

Às vezes, a Cruz aparece sem que a procuremos: é Cristo que pergunta por nós[24] Diante da Cruz inesperada experimentaremos um movimento de recusa. É a reação habitual da nossa natureza, que não nos deve preocupar, mas que não há-de impedir uma aceitação progressiva.

Sabemos que nessas situações em que nos podemos sentir sós, Deus não nos abandona, está ao nosso lado; inclusivamente talvez o vejamos, somos capazes de nos dirigir a Ele de algum modo. Mas demos um passo mais, procuremos o Seu olhar. Se não nos conformamos com ver, se procuramos olhar para Cristo que carrega a Cruz connosco, se deixamos que nos fale, aquilo que parecia desafortunado vai adquirindo outra coloração, e acaba por mudar a nossa vida.

Darmo-nos conta de que uma contradição pode significar um encontro mais profundo com Jesus Cristo ajudar-nos-á a encará-la de outro modo e então, a nossa Cruz não será uma Cruz qualquer: será... a Santa Cruz[25].

* * *

Vultum tuum, Domine, requiram! [26]. Três pessoas têm uma particular relação com o rosto de Cristo no caminho do Calvário. Só duas o procuram, mas as três encontram-no. Nenhuma delas fica indiferente, nenhum vai de mãos vazias. De cada uma podemos aprender algo e desejamos fazê-lo porque desejamos contemplar e ajudar outros a descobrir esse rosto no nosso caminho corrente pelo mundo.

Quereríamos atingir a unidade de corações que se dá entre Santa Maria e o seu Filho. Estamos conscientes de que isso supera as nossas forças, mas não abandonamos esse desejo, porque seria renunciar ao Amor e porque podemos avançar sem dúvida por esse caminho.

Um modo de o fazer é aproveitar os ensinamentos dos outros dois personagens: uma bondade simples será a ocasião de que muitos – em primeiro lugar, nós próprios – se encontrem com o Senhor; procurar esse olhar nas adversidades e amarguras da vida, fará com que nos vamos gradualmente identificando com a Vontade de Deus. Seremos, então, capazes de refletir o rosto de Jesus.

J. Diéguez

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[1] Act 1, 11.

[2] Cfr. Flp 1, 23.

[3] Cfr. 1 Cor 13, 12.

[4] Cfr. Flp 1, 25.

[5] Col 3, 1.

[6] Ibid.

[7] Cfr. Temas Actuais do Cristianismo, n. 113.

[8] Cfr. Sal 26, 8 (Vg).

[9] Caminho, n. 212.

[10] Cfr. Mc 10, 21; Mc 12, 41; Mt 4, 18-22; Jo 1, 42; Mt 19, 16; Mc 3, 5; Lc 22, 61; Jo 1, 38-47.

[11] Via-sacra, IV estação.

[12] Ibid.

[13] Ibid.

[14] Cfr. Lc 2, 35.

[15] Mt 13, 16-17.

[16] J. Ratzinger, Via-sacra no Coliseu, Sexta-feira Santa de 2005, VI estação.

[17] Ibid.

[18] João Paulo II, Via-sacra no Coliseu, Sexta-feira Santa de 2000, VI estação.

[19] Cristo que passa, n. 167.

[20] Cfr. Mc 15, 21.

[21] Cfr. Mc 15, 21.

[22] Via-sacra, V estação.

[23] J. Ratzinger, Introdução ao espírito da liturgia, p. 105.

[24] Via-sacra, V estação.

[25] Santo Rosário, IV mistério doloroso.

[26] Cfr. Sal 26, 8 (Vg).