Porquê jejuar?

Ainda tem sentido, nos nossos dias, fazer jejum? Que valor tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento? Este artigo, baseado em palavras de Bento XVI, 2009 *, oferece reflexões sobre o porquê do jejum, uma tradição da Quaresma.

"Man of Sorrows", William Dyce.

Uma das três “práticas penitenciais”

A Quaresma, um caminho de treino espiritual mais intenso, propõe-nos três práticas penitenciais muito queridas da tradição bíblica e cristã – a oração, a esmola, o jejum – a fim de nos predispormos para celebrar melhor a Páscoa e deste modo fazer experiência do poder de Deus que, como ouviremos na Vigília Pascal, «derrota o mal, lava as culpas, restitui a inocência aos pecadores, a alegria aos aflitos. Dissipa o ódio, domina a insensibilidade dos poderosos, promove a concórdia e a paz» (Precónio pascal).

Jesus preparou-se para a sua missão rezando e jejuando

Gostaria de refletir em particular sobre o valor e o sentido do jejum. De facto, a Quaresma traz à mente os quarenta dias de jejum vividos pelo Senhor no deserto, antes de empreender a sua missão pública. Lemos no Evangelho: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demónio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e no fim, teve fome» (Mt 4, 1-2). Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei (cf. Êx 34, 28), como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Horeb (cf. 1 Rs 19, 8), também Jesus, rezando e jejuando, se preparou para a sua missão, cujo início foi um duro confronto com o tentador.

No Paraíso também se jejuava

Podemos perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que a ele induz. Por isso, na História da salvação, o convite a jejuar é frequente.

Que valor e que sentido tem para nós privar-nos de algo que seria em si bom e útil?

Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, o Senhor ordena que o homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim, mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn 2, 16-17). Comentando a ordem divina, S. Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». E conclui: «O “não comas” e, portanto, a lei do jejum e da abstinência» (cf. Sermo de jejunio: PG 31, 163, 98). Dado que todos estamos entorpecidos pelo pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar, «para nos humilharmos – diz – diante do nosso Deus» (8, 21). O Omnipotente ouviu a sua prece e garantiu os seus favores e a sua proteção. O mesmo fizeram os habitantes de Nínive que, sensíveis ao apelo que Jonas fizera ao arrependimento, proclamaram um jejum, como testemunho da sua sinceridade, dizendo: «Quem sabe se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não pereçamos?» (3, 9). Também então Deus viu as suas obras e os poupou.

Ensinamentos de Jesus e os primeiros cristãos

No Novo Testamento, Jesus salienta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos fariseus, que observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete também o Mestre divino noutras partes, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o qual «vê no oculto, e te recompensará» (Mt 6, 18). Ele próprio dá o exemplo respondendo a Satanás, no final dos 40 dias passados no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). O verdadeiro jejum tem portanto como objetivo comer o «verdadeiro alimento», que é fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4, 34). Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal», o fiel deseja, com o jejum, submeter-se humildemente a Deus, confiando na Sua bondade e misericórdia.

O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum.

Encontramos a prática do jejum muito presente na primeira comunidade cristã (cf. At 13, 3; 14, 22; 27, 21; 2 Cor 6, 5). Também os Padres da Igreja falam da força do jejum, capaz de impedir o pecado, de reprimir os desejos do «velho Adão», e de abrir o caminho para Deus no coração do crente. O jejum é também uma prática frequente e recomendada pelos santos de todas as épocas. Escreve S. Pedro Crisólogo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum, portanto, quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu benefício o coração de Deus não feche o seu a quem lhe suplica» (Sermo 43; PL 52, 320.332).

Jejum e cuidado com o corpo

Jejuar em primeiro lugar é uma «terapia» para curar tudo o que nos impede de nos conformarmos com a vontade de Deus

«Nos nossos dias, a prática do jejum parece ter perdido um pouco do seu valor espiritual e ter adquirido, numa cultura marcada pela busca da satisfação material, o valor de uma medida terapêutica para a cura do próprio corpo. Jejuar é sem dúvida bom para o bem-estar, mas para os fiéis é, em primeiro lugar, uma «terapia» para curar tudo o que os impede de viver a vontade de Deus.

Na Constituição apostólica Paenitemini de 1966, Paulo VI reconhecia a necessidade de colocar o jejum no contexto da chamada a cada cristão para «não viver mais para si mesmo, mas para Aquele que o amou e se entregou a si por ele, e... também a viver pelos irmãos» (Cf. Cap. I). A Quaresma poderia ser uma ocasião oportuna para retomar as normas contidas na citada Constituição apostólica, valorizando o significado autêntico e perene desta antiga prática penitencial, que pode ajudar-nos a mortificar o nosso egoísmo e a abrir o coração ao amor de Deus e do próximo, primeiro e máximo mandamento da nova Lei e compêndio de todo o Evangelho (cf. Mt 22, 34-40).

O verdadeiro benefício do jejum

Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação.

A prática fiel do jejum também contribui para conferir unidade à pessoa, corpo e alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia como «nó complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do jejum, escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me perdoe; castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para agradar aos seus olhos, para alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3, 3: PL 40, 708). Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus.

Ao mesmo tempo, o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos irmãos nossos. Na sua Primeira Carta, S. João alerta-nos: «Aquele que tiver bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como estará nele o amor de Deus?» (1Jo 3, 17). Jejuar voluntariamente ajuda-nos a cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre (cf. Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para ajudar os outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos é indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção para com os irmãos, encorajo as paróquias e todas as outras comunidades a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando igualmente a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde o início, o estilo da comunidade cristã, na qual eram feitas coletas especiais (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres quanto, graças ao jejum, tinham poupado (cf. Didascalia Ap., V, 20, 18). Também hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo durante o tempo litúrgico quaresmal.

De quanto disse, sobressai com grande clareza que o jejum representa uma prática ascética importante, uma arma espiritual para lutar contra qualquer eventual apego desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer dos alimentos e de outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os apetites da natureza fragilizada pela culpa da origem, cujos efeitos negativos atingem toda a personalidade humana. Um antigo hino litúrgico quaresmal exorta oportunamente: «Utamur ergo parcius, / verbis, cibis et potibus, / somno, iocis et arcitius / perstemus in custodia – Usemos de modo mais sóbrio palavras, alimentos, bebidas, sono e jogos, e permaneçamos mais atentamente vigilantes».

* Artigo elaborado a partir da Mensagem do Papa Bento XVI para a Quaresma do ano 2009