A crise da sociedade pede um sereno regresso a Deus

Entrevista ao Pe. José Rafael Espírito Santo, vigário regional do Opus Dei em Portugal, publicada na revista ESEG-Magazine.

Pe. José Rafael Espírito Santo

Quem é o Padre José Rafael Espírito Santo, visto por si mesmo?

Em geral os auto-retratos só servem para alguma coisa quando são feitos por verdadeiros artistas e eu não me encontro nesse número. Em qualquer caso, posso dizer que, no fundamental e no que importa, sou e esforço-me por ser em todas as circunstâncias o que acaba de referir: Padre. Isto sem mérito meu: ser sacerdote de Cristo é um dom que não procurei; foi Deus Quem mo pôs diante, sem coisas extraordinárias, mas de um modo interpelante.

Como se chega a Vigário do Opus Dei em Portugal?

Por nomeação do prelado do Opus Dei. No meu caso, a decisão foi tomada em Outubro de 2002 e publicada no boletim oficial da prelatura, “Romana”, que está acessível na internet. Fiquei muito surpreendido e diria mesmo um pouco assustado, mas aceitei; na Igreja é uma tradição boa não recusar os encargos que nos atribuem, pois sabemos que se Deus nos põe uma carga em cima também dará a força para a levar.

Sente o peso da influência da Obra no nosso País?

Essa questão necessita de ser inserida no âmbito mais vasto da influência do próprio Deus na História dos homens. Deus anda muito activo, em todo o mundo. O Papa secunda-o com grande criatividade. A civilização ocidental parece sentir um certo cansaço de Deus, mas Deus não mostra qualquer sinal de cansaço pelos homens. A Igreja renova-se; a fé dos cristãos purifica-se, pede maior autenticidade. O Opus Dei, sendo uma das manifestações da vida da Igreja, acende uma dessas luzes divinas no meio da cidade dos homens: a bondade de Deus acompanha-nos nas ruas, em casa, nos amores, nas angústias, nos risos, no trabalho, na diversão; a vida de cada dia, aparentemente “sempre igual e sem transcendência” pode estar cheia do afecto de Deus. Esta é a influência que vejo Deus ter hoje entre nós, também através do Opus Dei. Esse é o peso que sinto: o da responsabilidade de dar o testemunho de Deus em todos os âmbitos da sociedade.

Como se movimenta nos centros de decisão?

Nos centros de decisão da vida social? – Simplesmente não me movimento. Não é da minha competência. Tenho, sim, encontros frequentes com os bispos portugueses: a prelatura do Opus Dei é um serviço às igrejas locais.

Tem relações pessoais com o poder político?

Tenho os direitos e deveres de cidadão… e tento exercitar os direitos e cumprir os deveres. Não conheço pessoalmente nenhum dos membros do governo, mas não recusaria oferecer um trato cordial, fraterno, sacerdotal, a qualquer pessoa, e a qualquer político.

E com o poder financeiro?

Os meus amigos que trabalham em instituições financeiras, rejeitariam que a nossa velha amizade pudesse ser lida como uma “relação com o poder financeiro”. E eu também não a posso chamar assim, porque absolutamente não o é.

A sua nomeação para Vigário Regional representa uma viragem na estratégia do Opus Dei em Portugal?

A missão do Opus Dei aparece consignada de modo claro nos estatutos atribuídos pela Santa Sé à prelatura, confirmando o pensamento do fundador, Josemaría Escrivá, que como se sabe foi canonizado em 2002. É a promoção da procura da santidade - união consciente e coerente com Deus - na vida quotidiana. Com modos e conteúdos próprios. Em cada época reactualiza-se revitaliza-se a missão: não há “viragens estratégicas”, no sentido de “alterações substanciais”, há uma passagem de testemunho e um novo fôlego.

Quais são as linhas de força do seu programa à frente da Obra?

Ser “vigário” significa ao mesmo tempo ser representante e delegado: esse é o papel de um vigário regional relativamente ao prelado que o Papa nomeia para a liderança do Opus Dei. Quando foi nomeado prelado do Opus Dei, em 1994, D. Javier Echevarría indicou 3 objectivos: o robustecimento da família, a cristianização da cultura, e a aposta na juventude. Estão plenamente actuais e operativos.

Que balanço faz do trabalho desenvolvido pelo seu antecessor?

Um balanço tão favorável que é para mim uma grande segurança poder ter o Pe. António Barbosa como meu colaborador habitual e poder beneficiar do seu conselho prudente.

O que é que o distingue do seu antecessor? O estilo, o projecto, a estratégia, a táctica, os objectivos?

Distingue-me dele a juventude, ficando eu a ganhar (se ser novo for vantagem); e distinguem-me dele as qualidades, ficando eu a perder. O governo no Opus Dei é uma tarefa pastoral, de cuidado e atenção às pessoas. Confio na ajuda de Deus, e na dos meus colaboradores. Está fora do meu espírito realizar um “projecto pessoal”. Terei de prestar contas, sobretudo a Deus.

O que é que mudou na Obra depois da canonização do Fundador?

A dimensão que a canonização tomou, na Praça de S. Pedro e em tantas zonas do mundo, impressionou-nos a todos. Ficou uma certa sensação de que a mensagem do “santo do quotidiano” - como o Papa chamou a S. Josemaría - irá conhecer uma fecundidade crescentemente multiplicada.

O Opus Dei em Portugal influi nas decisões de expressão nacional?

Não influi e não pretende influir. As nossas esperanças estão exclusivamente postas na conversão pessoal de cada um, e a partir daí cada um dará o seu contributo livre e responsável para tornar a sociedade mais humana, mais de acordo com o espírito de Cristo. Sem isso não há progresso duradouro. Os nossos bispos falaram, num diagnóstico certo, em “crise de sociedade, crise de civilização”. É uma doença que não se cura com voluntarismos arrogantes, mas com um sereno regresso a Deus.

Pode indicar três grandes objectivos da Obra, em Portugal, até ao fim da década?

No passado dia 29 de Junho o Papa publicou um documento intitulado “A Igreja na Europa”, de leitura indispensável. Peço licença para chamar à nossa conversa um breve trecho: “Muitos europeus contemporâneos pensam que sabem o que é o cristianismo, mas realmente não o conhecem. (...) Em muita gente, as grandes certezas da fé foram substituídas por um sentimento religioso vago e pouco empenhativo; difundem-se várias formas de agnosticismo e de ateísmo prático que concorrem para agravar a divergência entre a fé e a vida; muitos há que se deixaram contagiar pelo espírito de um humanismo imanentista que enfraqueceu a sua fé, levando-os com frequência, infelizmente, a abandoná-la completamente. (...) A Europa exige evangelizadores credíveis, cuja vida, em sintonia com a cruz e a ressurreição de Cristo, irradie a beleza do Evangelho”. Qualquer objectivo que eu indicasse estaria dentro deste.

Como vê a Comunicação Social que se faz em Portugal?

Primeiro, vejo-a numa encruzilhada de dilemas: colaboração com a Justiça ou função de denúncia?; prioridade aos factos ou à presunção de inocência? Noutro plano: audiências ou linha editorial?; sensacionalismo ou reflexão? Ou ainda noutro plano: espaço informativo ou oportunidade publicitária?; interesse público ou razões comerciais?

São temas difíceis que pedem uma solução para manter a credibilidade e, a longo prazo, a utilidade dos meios de comunicação.

Pressinto que grande parte do público agradeceria muito poder encontrar no tom dos media um estímulo para a coesão cultural, para a compreensão, para a procura da excelência na própria vida. Parece, contudo, vigorar uma preferência pelo conflito, pelo choque, pelo sarcasmo, que, no mínimo, cansam. E na maior parte dos meios informativos sente-se a falta de conteúdo religioso, que não seja meramente anedótico e extravagante.

O que pensa do ensino superior disponível em Portugal?

Essa é uma questão que me diz muito por todo o meu passado universitário; e vejo com pena que desapareceu do horizonte o grande objectivo de uma formação “universal”, isto é, a oportunidade de uma reflexão globalizante sobre o que é o homem e o mundo. Não se trata de que todos os cursos sejam de filosofia, mas cada área do saber deve estar aberta ao questionamento dos seus próprios fundamentos e a uma cultura verdadeiramente humanista. Nas sequelas do ingénuo optimismo cientificista e positivista, prescindiu-se do perguntar sobre o porquê e o para quê mais profundos, ficando o saber e a formação universitária reduzidos a um pragmatismo e utilitarismo imediatos, fechados no âmbito do subjectivismo. Como lembrou o Papa na encíclica “Fé e razão” é preciso recuperar a confiança na razão como caminho para descobrir verdades seguras. E nesse sentido são de louvar todas as iniciativas no âmbito da vida universitária que procuram ir contra-corrente, fomentando inquietações mais profundas e um desejo sincero da verdadeira sabedoria.

Que balanço faz da acção do actual Governo em Portugal?

É uma boa pergunta... para um analista político, não para mim. Sem estar a pensar em nenhum governo em particular, sublinho que há assuntos que pedem uma actuação especialmente ponderada. Quando as questões se referem à vida, à bioética, à vida terminal, aos imigrantes, à família, à valorização criminal de comportamentos, à liberdade de educação, não se pode ter como objectivo político principal um simples equilíbrio equidistante a todas as sensibilidades. Está em causa aquilo que o homem é, aquilo que a sociedade é, e, por isso, está também em causa a saúde e conforto espiritual de toda a nação. Não pode deixar de se fazer uma indagação antropológica profunda que chegue a convicções. Um mero pragmatismo de interesses seria tão perigoso, e mortífero, como as ideologias ateias do século XX.

O Opus Dei está empenhado em eleger um Cardeal da Obra para futuro Papa?

Não. O Opus Dei está empenhado em seguir o Papa, quem quer que seja. O resultado dos dois últimos conclaves contrariou, em ambos os casos, todas as previsões humanas, o que confirma mais a ideia de que podemos confiar nas inspirações do Espírito Santo.

Que influência tem hoje o Opus Dei na orientação do Vaticano?

Teria mais lógica a pergunta feita ao contrário. O Opus Dei também é Igreja: é uma das formas hierárquicas nas quais a Igreja se auto-organiza na realização da sua missão pastoral. Por isso digo que se, ao contrário, me perguntasse “que influência tem hoje o Vaticano no Opus Dei”, poderia responder que total, pois a única razão de ser do Opus Dei é servir a Igreja.

O Opus Dei é a favor do Concílio Vaticano III?

Se o Papa, este ou outro no futuro, entender convocá-lo, sim. Mas, entretanto, podia ser interessante que nos preocupássemos mais em viver em plenitude as luzes do Concílio Vaticano II. Para muita gente isso tem de começar pela leitura dos documentos resultantes desse Concílio.

O Opus Dei é a favor de uma reactualização da moral sexual defendida pela Igreja? E o que pensa da Ordenação Sacerdotal das mulheres? E do celibato dos padres?

Antes de mais, quero deixar claro que o Opus Dei não tem doutrina moral ou teológica própria: como qualquer fiel consciente da sua fé, professa a doutrina entregue por Cristo à sua Igreja e exposta ao longo dos séculos pelo Magistério, com a assistência do Espírito Santo.

Relativamente à moral sexual da Igreja, que tem sido cada vez mais esclarecidamente ensinada, vemos como é uma consoladora esperança para salvar as pessoas da confusão vital em que foram lançadas nas últimas décadas. Entre condescendências, permissivismos, libertinagens, e experimentalismos variados, perdeu-se o sentido do amor e da sexualidade, e instalou-se a insegurança e a solidão. A mensagem da Igreja é um grito de esperança: é possível viver esse amor, alcançar essa felicidade profunda à qual todos aspiramos.

Quanto ao sacerdócio, por um lado, a Igreja não hesita em reconhecer que não recebeu do seu fundador, Cristo, a faculdade de conferir o sacerdócio às mulheres. E também por outro lado continua a dar-se na Igreja um amadurecimento e fortalecimento progressivo quanto às razões teológicas que sustentam a conveniência de ordenar somente os homens que tenham recebido o dom - a bênção - do celibato.

A pergunta junta três temas que, julgo, são algumas vezes compactados como uma só acusação à Igreja, censurando-a por não compreender a situação do homem, e da mulher, real e concreto. Como se, na moral da Igreja, tudo o mais fosse aceitável e fácil e somente estes fossem os temas polémicos e difíceis.

O Papa na encíclica “O esplendor da Verdade” perguntou: quando a Igreja fala sobre o comportamento do homem está a falar para quem? Para o homem ferido pelo pecado, para quem é difícil fazer o bem? Não: fala para o homem, pecador sim, mas redimido pelo sangue de Cristo, e chamado às boas obras; agora para todos e cada um é possível viver como filhos de Deus, ousar a heroicidade da santidade, pois contamos com a graça de Deus que nos transforma. Por isso, não é de estranhar que o ensinamento moral seja exigente. Mas é possível alcançar esse ideal e vale a pena: só assim nos realizamos como pessoas.

Que lugar tem o ecumenismo na vida do Opus Dei?

É uma preocupação primária. Na oração diária, todos os fiéis do Opus Dei rezam por esta intenção. Acompanhamos os impressionantes gestos do Papa João Paulo II. Desejamos que quanto antes todos os cristãos sejam “um só rebanho, com um só pastor”, “para que o mundo acredite” (é a enigmática promessa de Cristo). Noutros países com maior presença de cristãos não católicos, o ecumenismo é também uma acção quotidiana. A seguir ao ecumenismo vem o diálogo inter-religioso, a que procuramos dar eco secundando a acção de João Paulo II.