Semana Santa com o Papa Francisco (2023)

Homilias das celebrações litúrgicas do Papa Francisco durante a Semana Santa: Domingo de Ramos, Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa, Vigília Pascal e Domingo de Páscoa.

Semana Santa con el Papa Francisco (2023)

Domingo de Ramos - Audiência de Quarta-feira - Missa Crismal de Quinta-feira Santa / Santa Missa da Ceia do Senhor de Quinta-feira Santa - Celebração da Paixão do Senhor de Sexta-feira Santa / Via Sacra - Sábado Santo Vigília Pascal - Domingo de Páscoa / Bênção Urbi et Orbi


Calendário das cerimónias presididas pelo Papa Francisco.
domingo 2, Domingo de Ramos, Santa Missa às 9:00 (10:00 em Roma).
• 5.ª feira 6, Quinta-feira Santa, Santa Missa Crismal às 8:30 (9:30 em Roma).
• 6.ª feira 7, Sexta-feira Santa, Paixão do Senhor às 16:00 (17:00 em Roma).
• 6.ª feira 7, Sexta-feira Santa, Via Sacra às 20:15 (21:15 em Roma).
• sábado 8, Sábado Santo, Vigília Pascal a las 18:30 (19:30 em Roma).
• domingo 9, Domingo de Páscoa, Santa Missa às 9:00 (10:00 em Roma). E Bênção Urbi et Orbi às 11:00 (12:00 em Roma).


Domingo de Ramos. 2 de abril de 2023

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mt 27, 46): é a invocação que a Liturgia nos fez repetir hoje no Salmo Responsorial (cf. Sal 22/21, 2), sendo também – no Evangelho que ouvimos – a única pronunciada na cruz por Jesus. Representam, pois, as palavras que nos conduzem ao coração da paixão de Cristo, ao ponto culminante dos sofrimentos que padeceu para nos salvar. «Porque Me abandonaste?».

Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma. Foram sofrimentos do corpo: pensemos nas bofetadas, nas pancadas, na flagelação, na coroa de espinhos, na tortura da cruz. Foram sofrimentos da alma: a traição de Judas, as negações de Pedro, as condenações religiosa e civil, a zombaria dos guardas, os insultos ao pé da cruz, a rejeição de tantos, a falência de tudo, o abandono dos discípulos. E contudo, no meio de todo este sofrimento, restava a Jesus uma certeza: a proximidade do Pai. Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» O abandono de Jesus.

Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, que é o sofrimento do espírito: na hora mais trágica, Jesus experimenta o abandono por parte de Deus. Antes disto, nunca chamara o Pai pelo nome genérico de Deus. Para nos fazer sentir a intensidade daquele momento, o Evangelho apresenta a frase também em aramaico; dentre as palavras pronunciadas por Jesus na cruz, esta é a única que nos chega na língua original. O acontecimento real é o abaixamento extremo, ou seja, o abandono de seu Pai, o abandono de Deus. Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender. Vê o céu fechado, experimenta o viver no seu amargo limite, o naufrágio da existência, o colapso de toda a certeza: grita «o porquê dos porquês». «Tu, ó Deus, porquê?»

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» Na Bíblia, o verbo «abandonar» é forte; aparece em momentos de dor extrema: em amores fracassados, rejeitados e traídos; em filhos enjeitados e abortados; em situações de repúdio, viuvez e orfandade; em casamentos gorados, em exclusões que privam dos laços sociais, na opressão da injustiça e na solidão da doença. Em suma, nas mais drásticas dilacerações dos vínculos, aplica-se esta palavra: «abandono». Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre Si o pecado do mundo. E, no auge, Ele – Filho unigénito e predileto – experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus.

E porque foi tão longe? Por nós; não há outra resposta. Por nós. Irmãos e irmãs, isto hoje não é um espetáculo. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim. Este abandono é o preço que pagou por mim. Fez-Se solidário com cada um de nós até ao ponto extremo, para estar connosco até ao fim. Experimentou o abandono para não nos deixar reféns da desolação e permanecer ao nosso lado para sempre. Fê-lo por mim, por ti, para que, quando eu, tu ou qualquer outro se vir encurralado à parede, perdido num beco sem saída, precipitado no abismo do abandono, sorvido no redemoinho de tantos «porquês» sem resposta, saibamos que há uma esperança: Ele, uma esperança para ti, para mim. Não é o fim, porque Jesus esteve ali e agora está contigo: Ele que sofreu a distância causada pelo abandono para acolher no seu amor todas as nossas distâncias. A fim de que possa cada um de nós dizer: nas minhas quedas (cada um de nós caiu tantas vezes!), na minha desolação, quando me sinto traído ou traí os outros, quando me sinto descartado ou descarto os outros, quando me sinto abandonado ou abandonei os outros, pensemos que Ele foi abandonado, traído, descartado. Nisto encontramo-Lo a Ele. Quando me sinto transviado e perdido, quando não aguento mais, Ele está comigo; nos meus tantos porquês sem resposta, Ele está neles.

É assim que o Senhor nos salva: a partir de dentro dos nossos «porquês». De lá, descerra a esperança que não desilude. De facto, na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não Se deixa cair no desespero – este é o limite –, mas reza e entrega-Se: grita o seu «porquê» com as palavras de um Salmo (22/21, 2) e entrega-Se nas mãos do Pai, embora O sinta distante (cf. Lc 23, 46) ou nem O sinta sequer, porque Se encontra abandonado. No abandono, entrega-Se. No abandono, continua a amar os Seus que O deixaram sozinho. No abandono, perdoa aos que O crucificaram (cf. Lc 23, 34). E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior, de tal modo que cada uma das nossas separações se transforma em comunhão.

Irmãos e irmãs, um amor assim como o de Jesus, que dá tudo por nós, até ao fim, é capaz de transformar os nossos corações de pedra em corações de carne. É um amor de piedade, ternura e compaixão. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim. Cristo, abandonado, impele-nos a procurá-Lo e a amá-Lo nos abandonados. Porque neles, não temos apenas necessitados, mas temo-Lo a Ele, Jesus Abandonado, Aquele que nos salvou descendo até ao fundo da nossa condição humana. Ele está com cada um deles, abandonados até à morte... Penso naquele homem sem-abrigo, alemão, que morreu sob a colunata, sozinho, abandonado. É Jesus para cada um de nós. Muitos precisam da nossa proximidade, tantos abandonados. Também eu preciso que Jesus me acaricie e Se aproxime de mim, e, para isso, vou encontrá-Lo nos abandonados, nas pessoas sozinhas. Ele deseja que cuidemos dos irmãos e irmãs que mais se parecem com Ele, com Ele no ato extremo do sofrimento e da solidão. Hoje, queridos irmãos e irmãs, há tantos «cristos abandonados». Há povos inteiros explorados e deixados à própria sorte; há pobres que vivem nas encruzilhadas das nossas estradas e cujo olhar não temos a coragem de fixar; há migrantes, que já não são rostos, mas números; há reclusos rejeitados, pessoas catalogadas como problema. Mas há também muitos cristos abandonados invisíveis, escondidos, que são descartados de forma «elegante»: crianças impedidas de nascer, idosos deixados sozinhos – podem porventura ser o teu pai, a tua mãe, o avô, a avó, abandonados nos lares de terceira idade –, doentes não visitados, pessoas portadoras de deficiência ignoradas, jovens que sentem dentro um grande vazio sem que ninguém escute verdadeiramente o seu grito de dor. E não encontram outra estrada senão o suicídio. Os abandonados de hoje. Os cristos de hoje.

Jesus abandonado pede-nos para termos olhos e coração para os abandonados. Para nós, discípulos do Abandonado, ninguém pode ser marginalizado, ninguém pode ser deixado a si mesmo; porque – recordemo-lo – as pessoas rejeitadas e excluídas são ícones vivos de Cristo, recordam-nos o seu amor louco, o seu abandono que nos salva de toda a solidão e desolação. Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado e saber amar Jesus em cada abandonado, em cada abandonada. Peçamos a graça de saber ver, saber reconhecer o Senhor que continua a clamar neles. Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não fomos deixados sozinhos por Deus; cuidemos de quem é deixado só. Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós «Se esvaziou a Si mesmo» (Flp 2, 7).

Esvaziou-se totalmente por nós.



Audiência de Quarta-feira. "O Crucificado, fonte de esperança"

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

No domingo passado a Liturgia fez-nos ouvir a Paixão do Senhor. Ela termina com as seguintes palavras: «Selaram a pedra» (Mt 27, 66). Tudo parece ter acabado. Para os discípulos de Jesus, aquela pedra marca o fim da esperança. O Mestre foi crucificado, morto da maneira mais cruel e humilhante, pendurado num patíbulo infame fora da cidade: um fracasso público, o pior final possível – naquela época era o pior. Pois bem, aquele desânimo que oprimia os discípulos não nos é totalmente estranho hoje. Também em nós se adensam pensamentos obscuros e sentimentos de frustração: por que tanta indiferença em relação a Deus? Isto é curioso: por que tanta indiferença em relação a Deus? Por que tanto mal no mundo? Mas, reparai, há o mal no mundo! Por que as desigualdades continuam a aumentar e não chega a paz tão almejada? Por que somos apegados assim à guerra, a fazer mal uns aos outros? E, no coração de cada um, quantas expetativas esvaecidas, quantas desilusões! E ainda aquela sensação de que os tempos passados eram melhores e de que no mundo, talvez até na Igreja, as coisas não são como outrora... Em síntese, até hoje a esperança parece às vezes selada sob a pedra da desconfiança. Convido cada um de vós a pensar nisto: onde está a tua esperança? Tu tens uma esperança viva ou selaste-a ali, ou puseste-a na gaveta como uma lembrança? Mas a tua esperança impele-te a caminhar ou é uma recordação romântica como se fosse algo que não existe? Onde está a tua esperança hoje?

Na mente dos discípulos permanecia fixa uma imagem: a cruz. E ali acabou tudo. Ali estava concentrado o fim de tudo. Mas pouco tempo depois descobririam na própria cruz um novo início. Prezados irmãos e irmãs, é assim que a esperança de Deus germina, nasce e renasce nos buracos negros das nossas expetativas desiludidas; e ela, a esperança verdadeira, ao contrário, nunca desilude! Pensemos precisamente na cruz: do mais terrível instrumento de tortura, Deus obteve o maior sinal do amor. Aquele madeiro de morte, transformado em árvore de vida, lembra-nos que os inícios de Deus começam muitas vezes a partir dos nossos fins: é assim que Ele gosta de fazer maravilhas. Então, hoje olhemos para a árvore da cruz, para que em nós brote a esperança: aquela virtude diária, aquela virtude silenciosa, humilde, mas aquela virtude que nos mantém em pé, que nos ajuda a ir em frente. Sem esperança não se pode viver. Pensemos: onde está a minha esperança? Hoje, olhemos para a árvore da cruz para que germine em nós a esperança: para sermos curados da tristeza – mas, quanta gente triste... A mim, quando podia ir pelas ruas, agora não posso porque não me deixam, mas quando eu podia ir pelas ruas na outra Diocese, gostava de ver o olhar das pessoas. Quantos olhares tristes! Gente triste, gente que falava consigo mesma, que caminhava só com o telemóvel, mas sem paz, sem esperança. E onde está a tua esperança hoje? É necessária um pouco de esperança para sarar da tristeza de que adoecemos, para sarar da amargura com que poluímos a Igreja e o mundo. Irmãos e irmãs, olhemos para o Crucifixo. E o que vemos? Vemos Jesus nu, Jesus despojado, Jesus ferido, Jesus atormentado. É o fim de tudo? Ali está a nossa esperança.

Então vejamos como nestes dois aspetos a esperança, que parece morrer, renasce. Em primeiro lugar, vejamos Jesus despojado: com efeito, «depois de o terem crucificado, dividiram as suas vestes entre si, lançando a sorte» (v. 35). Deus despojado: Aquele que tem tudo deixa-se privar de tudo. Mas aquela humilhação é o caminho para a redenção. É assim que Deus vence as nossas aparências. Com efeito, nós temos dificuldade em despojar-nos, em fazer a verdade: procuramos cobrir sempre as verdades porque não nos agradam; revestimo-nos de exterioridade, que procuramos e cuidamos, de máscaras para nos disfarçarmos e nos mostrarmos melhores do que somos. É um pouco o hábito da maquiagem: maquiagem interior, parecer melhor do que os outros... Pensamos que o importante é ostentar, parecer, de tal modo que os outros falem bem de nós. E adornamo-nos de aparências, adornamo-nos de aparências, de coisas supérfluas; mas assim não encontramos a paz. Depois a maquiagem vai embora e tu olhas para o espelho com o rosto feio que tens, mas verdadeiro, aquele que Deus ama, não aquele “maquiado”. Jesus despojado de tudo lembra-nos que a esperança renasce fazendo a verdade sobre nós – dizer a verdade a si mesmo – abandonando as ambiguidades, libertando-nos da convivência pacífica com as nossas falsidades. Às vezes, habituamo-nos de tal modo a dizer-nos falsidades que convivemos com as falsidades como se fossem verdades e acabamos envenenados pelas nossas falsidades. Isto é necessário: regressar ao coração, ao essencial, a uma vida simples, despojada de tantas coisas inúteis, que são sucedâneos de esperança. Hoje, quando tudo é complexo e corremos o risco de perder o fio da meada, temos necessidade de simplicidade, de redescobrir o valor da sobriedade, o valor da renúncia, de limpar o que polui o coração e deixa triste. Cada um de nós pode pensar em algo inútil de que se pode livrar para se reencontrar. Imagina, quantas coisas inúteis. Aqui, há quinze dias, em Santa Marta, onde moro – que é um hotel para muitas pessoas – surgiram vozes de que nesta Semana Santa seria bom olhar para o armário e despojar-se, mandar embora as coisas que temos, que não usamos... não imaginais a quantidade de coisas! É bom despojar-se das coisas inúteis. E tudo foi levado aos pobres, às pessoas que necessitam. Também nós, temos muitas coisas inúteis dentro do coração – e também fora. Olhai para o vosso armário: olhai para ele. Isto é útil, isto é inútil... e fazei limpeza. Olhai para o armário da alma: quantas coisas inúteis tens, quantas ilusões estúpidas. Voltemos à simplicidade, às coisas verdadeiras, que não precisam de maquiagem. Eis um bom exercício!

Demos uma segunda vista de olhos ao Crucifixo e vejamos Jesus ferido. A cruz mostra os pregos que lhe furam as mãos e os pés, o lado aberto. Mas às feridas do corpo acrescentam-se as da alma: mas quanta angústia! Jesus está sozinho: traído, entregue e renegado pelos seus, pelos seus amigos, inclusive pelos seus discípulos, condenado pelo poder religioso e civil, excomungado, Jesus experimenta até o abandono de Deus (cf. v. 46). Na cruz aparece também o motivo da condenação: «Este é Jesus, o rei dos judeus» (v. 37). É um escárnio: Ele, que fugira quando procuraram fazê-lo rei (cf. Jo 6, 15), é condenado por se ter feito rei; embora não tenha cometido crime algum, é colocado entre dois malfeitores e a Ele preferem o violento Barrabás (cf. Mt 27, 15-21). Em síntese, Jesus está ferido no corpo e na alma. Pergunto-me: de que modo isto ajuda a nossa esperança? Assim, Jesus nu, privado de tudo, de tudo: o que diz isto à minha esperança, como me ajuda?

Também nós estamos feridos: quem não o está na vida? E muitas vezes com feridas escondidas que ocultamos pela vergonha. Quem não carrega as cicatrizes de escolhas passadas, de incompreensões, de dores que permanecem dentro e são difíceis de superar? Mas também de injustiças sofridas, de palavras cortantes, de juízos inclementes? Deus não esconde aos nossos olhos as feridas que lhe trespassaram o corpo e a alma. Mostra-as para nos indicar que na Páscoa se pode abrir uma nova passagem: fazer das próprias feridas furos de luz. “Mas, Santidade, não exagere”, alguém pode dizer-me. Não. É verdade: tenta; tenta. Tenta fazê-lo. Pensa nas tuas feridas, aquelas que só tu sabes, que cada um tem escondidas no coração. E olha para o Senhor. E verás, verás como daquelas feridas saem furos de luz. Jesus na cruz não recrimina, ama. Ama e perdoa quantos o ferem (cf. Lc 23, 34). Assim converte o mal em bem, assim converte e transforma a dor em amor.

Irmãos e irmãs, a questão não é ser ferido pouco ou muito pela vida, o ponto é o que fazer das minhas feridas. As pequeninas, as grandes, aquelas que deixarão um sinal no meu corpo, na minha alma sempre. O que faço com as minhas feridas? O que fazes tu e tu com as tuas feridas? “Não, Padre, não tenho feridas” – “Está atento, pensa duas vezes antes de dizer isto”. E pergunto-te: o que fazes com as tuas feridas, aquelas que só tu sabes? Podes deixá-las infetar no rancor, na tristeza, ou posso uni-las às de Jesus, a fim de que também as minhas chagas se tornem luminosas. Pensai em quantos jovens não toleram as próprias feridas e procuram no suicídio uma via de salvação: hoje, nas nossas cidades, muitos, muitos jovens que não veem uma maneira de sair, que não têm esperança e preferem ir além com a droga, com o esquecimento... pobrezinhos. Pensai neles. E tu, qual é a tua droga, para cobrir as feridas? As nossas feridas podem tornar-se fontes de esperança quando, em vez de nos comiserarmos ou de as esconder, enxugamos as lágrimas dos outros; quando, em vez de ter ressentimento pelo que nos é tirado, cuidamos do que falta aos outros; quando, em vez de nos inquietarmos, nos debruçamos sobre quantos sofrem; quando, em vez de ter sede de amor por nós próprios, saciamos a sede de quem precisa de nós. Pois só nos reencontraremos, se deixarmos de pensar em nós mesmos. Mas se continuarmos a pensar em nós mesmos já não nos encontraremos. E é agindo assim - diz a Escritura - que a nossa ferida em breve cicatrizará (cf. Is 58, 8), e a esperança voltará a florescer. Pensai: o que posso fazer pelos outros? Estou ferido, estou ferido de pecado, estou ferido de história, cada um tem a própria ferida. O que faço: lambo as minhas feridas assim, a vida inteira? Ou olho para as feridas dos outros e vou com a experiência ferida da minha vida, curar, ajudar os outros? Este é o desafio de hoje, para todos vós, para cada um de vós, para cada um de nós. Que o Senhor nos ajude a ir em frente.

* * *

Saúdo cordialmente aos peregrinos de língua espanhola, que são tantos. Em particular, saúdo os jovens que participam no Encontro Internacional Univ 2023. Nestes dias santos, aproximemo-nos de Jesus crucificado. Contemplando-O, feridos e despojados de tudo, reconheçamos a nossa própria verdade. Apresentemos-Lhe tudo o que somos e deixemos que Ele renove em nós a esperança de uma vida nova. Que Deus vos abençoe. Muito obrigado.


Quinta-feira Santa, 6 de abril de 2023

Missa Crismal


«O Espírito do Senhor está sobre mim» (Lc 4, 18): partindo deste versículo começou a pregação de Jesus e, do mesmo versículo, partiu a Palavra que hoje escutamos (cf. Is 61, 1). Portanto, no princípio, está o Espírito do Senhor.

E é sobre Ele que hoje quero refletir convosco, amados irmãos, pois, sem o Espírito do Senhor, não há vida cristã e, sem a sua unção, não há santidade. O Espírito é o protagonista e é bom hoje, no dia do nascimento do sacerdócio, reconhecer que Ele está na origem do nosso ministério, da vida e da vitalidade de cada Pastor. Com efeito, a santa Mãe Igreja ensina-nos a professar que é o Espírito Santo que «dá a vida», [1] como afirmou Jesus, quando disse: «É o Espírito quem dá a vida» ( Jo 6, 63); ensinamento retomado pelo apóstolo Paulo, quando escreve que «a letra mata, enquanto o Espírito dá vida» ( 2 Cor 3, 6) e falou da «lei do Espírito, que dá a vida (…) em Cristo Jesus» ( Rm 8, 2). Sem Ele, nem sequer a Igreja seria a Esposa viva de Cristo, mas, no máximo, uma organização religiosa, mais ou menos boa; não seria o Corpo de Cristo, mas um templo construído por mãos de homem. Então como edificar a Igreja senão a partir do facto de sermos «templos do Espírito Santo» ( 1 Cor 6, 19; 3, 16), que habita em nós? Não podemos deixá-Lo fora de casa ou arrumá-Lo em qualquer área devocional, mas colocá-Lo no centro. Precisamos diariamente de dizer: «Vinde, porque sem a vossa força e favor clemente, nada há no homem que seja inocente». [2]

Cada um de nós pode dizer: O Espírito do Senhor está sobre mim. E não é presunção, é realidade, já que cada cristão, e de modo particular cada sacerdote, pode fazer suas as palavras que se lhe seguem: «porque o Senhor me consagrou com a unção» (Is 61, 1). Irmãos, sem mérito nosso, por pura graça, recebemos uma unção que nos fez pais e pastores no Povo santo de Deus. Detenhamo-nos, pois, neste aspeto do Espírito: a unção.

Depois da primeira «unção» que aconteceu no ventre de Maria, o Espírito desceu sobre Jesus no Jordão. Em seguida, como explica São Basílio, «cada ação [de Cristo] gozava da com-presença do Espírito Santo». [3] Pois, com o poder daquela unção, Ele pregava e realizava sinais, em virtude daquela unção «emanava d’Ele uma força que a todos curava» ( Lc 6, 19). Jesus e o Espírito trabalham sempre juntos, como se fossem as duas mãos do Pai – assim o diz Santo Ireneu [4] – que, estendidas para nós, nos abraçam e levantam. E, por elas, foram marcadas as nossas mãos, ungidas pelo Espírito de Cristo. Sim, irmãos, o Senhor não Se limitou a escolher-nos e chamar-nos ora daqui ora dali, mas infundiu em nós a unção do seu Espírito, o mesmo que desceu sobre os Apóstolos. Irmãos, somos «ungidos».

Fixemos então o nosso olhar nos Apóstolos. Jesus escolheu-os e, à sua chamada, deixaram os barcos, as redes, a casa, etc. A unção da Palavra mudou-lhes a vida. Com entusiasmo, seguiram o Mestre e começaram a pregar, convencidos que, depois, realizariam coisas ainda maiores; até que chegou a Páscoa. Parece que então tudo ficou suspenso: chegaram a negar e abandonar o Mestre. Não devemos ter medo, sejamos corajosos a ler a nossa própria vida e as nossas quedas. Chegaram a negar e abandonar o Mestre, a começar por Pedro. Puderam dar-se conta do grande desajustamento entre a visão deles e a de Jesus, e perceberam que não O tinham compreendido: a frase «não conheço esse homem» (Mc 14, 71), que Pedro alegou no pátio do sumo sacerdote depois da Última Ceia, não é mera defesa impulsiva, mas uma admissão de ignorância espiritual: ele e os outros talvez estivessem à espera duma vida de sucessos atrás dum Messias que arrastava multidões e fazia prodígios, mas não reconheciam o escândalo da cruz, que esfarelou as suas certezas. Jesus sabia que eles, sozinhos, não conseguiriam e, por isso, prometeu-lhes o Paráclito. E foi precisamente aquela «segunda unção», no Pentecostes, que transformou os discípulos, levando-os a apascentar o rebanho de Deus, e já não a si mesmos. Esta é a contradição que temos de resolver: sou pastor do povo de Deus ou de mim mesmo? E, para me ensinar a estrada, temos o Espírito. Foi aquela unção de fogo que extinguiu uma religiosidade centrada neles mesmos e nas próprias capacidades: acolhido o Espírito, evaporam-se os medos e as hesitações de Pedro; Tiago e João, consumidos pelo anseio de dar a vida, deixam de procurar lugares de honra (cf. Mc 10, 35-45), o nosso carreirismo, irmãos; os outros deixam de estar fechados e temerosos no Cenáculo, mas saem e tornam-se apóstolos pelo mundo inteiro. É o Espírito que muda o nosso coração, que o coloca num plano diverso.

Irmãos, um itinerário semelhante abraça a nossa vida sacerdotal e apostólica. Também para nós houve uma primeira unção, com início numa chamada cheia de amor que nos arrebatou o coração. Por ela, soltamos as amarras e, sobre um genuíno entusiasmo, desceu a força do Espírito que nos consagrou. Depois, segundo os tempos de Deus, havia de chegar para cada um a etapa pascal, que marca a hora da verdade. Trata-se dum momento de crise, que possui várias formas. A todos sucede, mais cedo ou mais tarde, experimentar desilusões, cansaços e fraquezas, com o ideal que parece diluir-se perante as exigências da realidade, substituído por uma certa rotina; e algumas provações – difíceis de imaginar antes – fazem aparecer a fidelidade mais incómoda do que outrora. Esta etapa – a da tentação, da prova que todos nós tivemos, temos e teremos – esta etapa representa, para quem recebeu a unção, um cume decisivo. Dele, pode-se sair mal, deixando-se planar rumo a uma certa mediocridade, arrastando-se cansado numa «normalidade» cinzenta onde se insinuam três perigosas tentações: a da acomodação, em que a pessoa se contenta com o que pode fazer; a da substituição, em que se tenta «recarregar» o espírito com algo diferente da nossa unção; a do desânimo – a mais comum –, em que, insatisfeitos, se avança por inércia. E aqui está o grande risco: permanecem intactas as aparências – sou sacerdote, sou padre –, enquanto a pessoa se fecha em si mesma e conduz a vida na apatia; a fragrância da unção deixou de perfumar a vida, e o coração, em vez de se dilatar, restringe-se envolvido pelo desencanto. É um destilado, sabeis? Quando o sacerdócio desliza lentamente para o clericalismo e o padre esquece-se de ser pastor do povo, para se tornar um clérigo de Estado.

Mas aquela crise pode tornar-se também um ponto de viragem no sacerdócio, a «etapa decisiva da vida espiritual, em que se deve efetuar a última escolha entre Jesus e o mundo, entre a heroicidade da caridade e a mediocridade, entre a cruz e um certo bem-estar, entre a santidade e uma honesta fidelidade ao compromisso religioso». [5] No final desta celebração, vão dar-vos de presente um clássico, um livro que trata deste problema: « A segunda chamada». É um clássico do Padre Voillaume, que aborda este problema. Lede-o! Com efeito todos nós precisamos de refletir sobre este momento do nosso sacerdócio. É o momento abençoado em que nós, como os discípulos na Páscoa, somos chamados a ser «suficientemente humildes para nos confessarmos vencidos por Cristo humilhado e crucificado, e para aceitarmos iniciar um novo caminho, o do Espírito, da fé e dum amor forte e sem ilusões». [6] É o chairos, no qual se descobre que «o todo não se reduz a abandonar o barco e as redes para seguir Jesus durante um certo tempo, mas exige ir até ao Calvário, acolher a sua lição e fruto, e ir com a ajuda do Espírito Santo até ao fim duma vida que deve terminar na perfeição da Caridade divina». [7] Com a ajuda do Espírito Santo: é o tempo para nós, como o foi para os Apóstolos, duma «segunda unção», tempo duma segunda chamada que devemos escutar para receber a segunda unção, em que se acolhe o Espírito não sobre o entusiasmo dos nossos sonhos, mas na fragilidade da nossa realidade. É uma unção que mostra a verdade no mais fundo de nós mesmos e que permite ao Espírito ungir as nossas fragilidades, os nossos cansaços, a nossa pobreza interior. Então a unção volta a perfumar d’Ele, não de nós. Neste momento, interiormente, recordo alguns de vós que estão em crise – digamos assim – que estão desorientados e não sabem como retomar o caminho, como voltar ao caminho nesta segunda unção do Espírito. A estes irmãos – tenho-os presente – digo simplesmente: Coragem, o Senhor é maior que as tuas fraquezas, os teus pecados. Entrega-te ao Senhor e deixa-te chamar uma segunda vez, esta vez com a unção do Espírito Santo. A vida dupla não te ajudará; lançar tudo pela janela, também não. Olha para a frente, deixa-te acariciar pela unção do Espírito Santo.

E o caminho para este passo de amadurecimento é admitir a verdade da própria fragilidade. A isto nos exorta «o Espírito da Verdade» (Jo 16, 13), que nos leva a olhar profundamente dentro de nós mesmos, a perguntar-nos: a minha realização depende da minha habilidade, da função que consigo obter, dos elogios que recebo, da carreira que faço, dos superiores ou colaboradores que tenho, das comodidades que me posso assegurar, ou então depende da unção que perfuma a minha vida? Irmãos, a maturidade sacerdotal passa pelo Espírito Santo, realiza-se quando Ele Se torna o protagonista da nossa vida. Então tudo muda de perspetiva, inclusive as desilusões e amarguras – mesmo os pecados –, porque já não se trata de procurar aperfeiçoar-se ajustando qualquer coisa, mas de nos entregarmos, sem nada reter para nós, Àquele que nos impregnou na sua unção e quer descer até ao fundo de nós mesmos. Irmãos, então voltaremos a descobrir que a vida espiritual torna-se livre e feliz, não quando se salvam as aparências e se coloca um remendo, mas quando se deixa a iniciativa ao Espírito e, abandonados aos seus desígnios, nos dispomos a servir onde e como nos for pedido: o nosso sacerdócio cresce, não com remendos, mas por transbordamento!

Se deixarmos agir em nós o Espírito da Verdade, guardaremos a unção – guardar a unção –, porque virão imediatamente à luz do dia as falsidades – as hipocrisias clericais –, as falsidades com que somos tentados a viver. E o Espírito, que «lava o que [no homem] há de impuro», sugerir-nos-á sem descanso para não mancharmos minimamente a unção. Vem-me à mente aquela frase de Qohélet, que diz: «Uma mosca morta infeta e estraga o azeite perfumado» (10, 1). É verdade! Toda a duplicidade – incluindo a duplicidade clerical – toda a duplicidade que se insinua é perigosa: não deve ser tolerada, mas levada à luz do Espírito. Porque, se não há «nada mais enganador que o coração, tantas vezes perverso» ( Jr 17, 9), o Espírito Santo, e só Ele, nos cura das infidelidades (cf. Os 14, 5). Para nós, trata-se duma luta imprescindível: de facto é indispensável, como escreveu São Gregório Magno, que, «quem anuncia a palavra de Deus, antes se debruce sobre o seu próprio modo de viver, para que, haurindo da própria vida, aprenda o que dizer e como dizê-lo. (...) Ninguém presuma dizer fora o que antes não ouviu dentro». [8] E o mestre interior que devemos escutar é o Espírito, sabendo que não há nada em nós que Ele não queira ungir. Irmãos, guardemos a unção: a invocação do Espírito seja, não uma prática ocasional, mas a respiração de cada dia. Vinde, vinde, guardai a unção. Eu, consagrado pelo Espírito, sou chamado a mergulhar n’Ele, a deixar entrar a sua luz nas minhas opacidades – temos tantas –, para reencontrar a verdade daquilo que sou. Deixemo-nos impelir por Ele no combate às falsidades que se agitam dentro de nós; e deixemo-nos regenerar por Ele na adoração, porque, quando adoramos o Senhor, Ele derrama nos nossos corações o seu Espírito.

«O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova» ( Is 61, 1; cf. Lc 4, 18-19) e levar – lê-se no prosseguimento da profecia – libertação, cura e graça; numa palavra, para levar harmonia onde não há. Pois, como diz São Basílio, «o Espírito é harmonia», é Ele que faz a harmonia. Depois de vos ter falado da unção, quero dizer-vos algo sobre esta harmonia, que é sua consequência. De facto, o Espírito Santo é harmonia; antes de mais nada, no Céu: São Basílio explica que «toda aquela harmonia supraceleste e inefável no serviço de Deus e na sinfonia mútua das potências supracósmicas, é impossível conservá-la a não ser pela autoridade do Espírito». [9] E, depois, na terra: na Igreja, Ele é realmente aquela «Harmonia divina e musical» [10] que tudo une. Mas imaginai um presbitério sem harmonia, sem o Espírito: não funciona. Ele suscita a diversidade dos carismas e recompõe-na na unidade, cria uma concórdia que não se funda na uniformização, mas na criatividade da caridade. Assim cria harmonia entre muitos. Assim faz harmonia num presbitério. Durante os anos do Concílio Vaticano II, que foi um dom do Espírito, um teólogo publicou um estudo no qual falava do Espírito em chave, não individual, mas plural. Convidou a imaginá-Lo como uma Pessoa divina não tanto singular, mas «plural», como o «nós de Deus», o nós do Pai e do Filho, porque é a sua ligação; é, em Si mesmo, concórdia, comunhão, harmonia. [11] Recordo-me que, quando li este tratado teológico – estava em teologia, nos meus estudos – fiquei escandalizado: parecia uma heresia, porque, na nossa formação, não se compreendia bem como era o Espírito Santo.

Tudo o que deseja é criar harmonia, principalmente através daqueles sobre quem derramou a sua unção. Irmãos, construir a harmonia entre nós não é tanto um método bom, para que a comunidade eclesial caminhe melhor, não é bailar o minuet, nem é questão de estratégia ou de cortesia, mas é sobretudo uma exigência interna na vida do Espírito. Peca-se contra o Espírito, que é comunhão, quando nos tornamos, mesmo por frivolidade, instrumentos de divisão, por exemplo – e voltamos ao mesmo tema – com a murmuração. Quando nos tornamos instrumentos de divisão, pecamos contra o Espírito. E faz-se o jogo do inimigo, que nunca sai a descoberto mas gosta de boatos e insinuações, fomenta partidos e fações, alimenta a nostalgia do passado, a desconfiança, o pessimismo, o medo. Por favor, estejamos atentos a não manchar a unção do Espírito e o vestido da Santa Mãe Igreja com a desunião, com as polarizações, com qualquer falta de caridade e comunhão. Recordemos que o Espírito, «o nós de Deus», prefere a forma comunitária, isto é, a disponibilidade acima das exigências próprias, a obediência acima dos próprios gostos, a humildade acima das próprias pretensões.

A harmonia não é apenas uma virtude entre outras. São Gregório Magno escreve: «Quanto valha a virtude da concórdia demonstra-o o facto de que, sem ela, todas as outras virtudes não valem absolutamente nada». [12] Ajudemo-nos, irmãos, a conservar a harmonia, conservar a harmonia – este seria o meu dever de casa – começando não pelos outros, mas pelo próprio, perguntando-me: nas minhas palavras, nos meus comentários, naquilo que digo e escrevo, há a marca do Espírito ou a do mundo? Penso também na gentileza do sacerdote – tantas vezes nós, padres, somos uns mal-educados –: pensemos na gentileza do sacerdote se o povo, até em nós, encontra pessoas insatisfeitas, pessoas descontentes, solteirões, que criticam e acusam, onde poderá ele ver a harmonia? Quantos não se aproximam ou até se afastam, porque na Igreja não se sentem acolhidos e amados, mas olhados com desconfiança e julgados! Em nome de Deus, acolhamos e perdoemos sempre! E lembremo-nos de que ser ríspido e lamuriento, além de não produzir nada de bom, corrompe o anúncio, porque é contratestemunho de Deus, que é comunhão e harmonia. E isto desagrada tanto e sobretudo ao Espírito Santo, que o apóstolo Paulo nos exorta a não entristecer (cf. Ef 4, 30).

Irmãos, deixo-vos estes pensamentos que me vieram do coração e concluo dirigindo-vos uma palavra simples e importante: obrigado! Obrigado pelo vosso testemunho, obrigado pelo vosso serviço; obrigado por tanto bem escondido que fazeis, obrigado pelo perdão e a consolação que ofereceis em nome de Deus: perdoai sempre, por favor, nunca negueis o perdão; obrigado pelo vosso ministério, que muitas vezes se desenrola no meio de tantas fadigas, incompreensões e pouco reconhecimento. Irmãos, o Espírito de Deus, que não desilude quem coloca n’Ele a própria confiança, vos encha de paz e leve a bom termo aquilo que em vós começou, para serdes profetas da sua unção e apóstolos de harmonia.

[1] Credo de Niceia-Constantinopla.

[2] Sequência, na Missa de Pentecostes.

[3] Liber de Spiritu Sancto XVI, 39.

[4] Cf. Adversus haereses IV, 20, 1.

[5] R. Voillaume, «La seconda chiamata», in S. Stevan (ed.), La seconda chiamata. Il coraggio della fragilità (Bolonha 2018), 15.

[6] Ibid., 24.

[7] Ibid., 16.

[8] Homiliae in Ezechielem, I, X, 13-14.

[9] Liber de Spiritu Sancto XVI, 38.

[10] In Psalmos 29, 1.

[11] Cf. H. Mühlen, Der Heilige Geist als Person. Ich – Du – Wir (Múnster in Westfália 1963).

[12] Homiliae in Ezechielem, I, VIII, 8.


Quinta-feira Santa, 6 de abril de 2023

Santa Missa da Ceia do Senhor


Sexta-feira Santa, 7 de abril de 2023

Celebração da Paixão do Senhor


Sábado Santo, 8 de abril de 2023

Vigília Pascal

A noite está a chegar ao fim e começam já a despontar os primeiros fulgores da aurora, quando as mulheres saem para o túmulo de Jesus. Caminham com passo incerto, olhar perdido e o coração dilacerado de dor por aquela morte que lhes arrebatou o Amado. Mas tendo chegado lá, ao ver o túmulo vazio, invertem o rumo, mudam de estrada; abandonam o sepulcro e correm a anunciar aos discípulos um percurso novo: Jesus ressuscitou e espera-os na Galileia. Na vida destas mulheres, aconteceu a Páscoa, que significa passagem: de facto, passam do caminho triste rumo ao sepulcro para uma corrida jubilosa até junto dos discípulos, a fim de lhes dizer não só que o Senhor ressuscitou, mas que há uma meta a alcançar imediatamente, a Galileia. O encontro com o Ressuscitado é lá. O renascimento dos discípulos, a ressurreição do seu coração passa pela Galileia. Entremos também nós neste caminho dos discípulos, que vai do túmulo à Galileia.

As mulheres – diz o Evangelho – «foram visitar o sepulcro» (Mt 28, 1). Pensam que Jesus Se encontre no lugar da morte, e que tudo tenha acabado para sempre. Às vezes acontece-nos, também a nós, pensar que a alegria do encontro com Jesus pertença ao passado, enquanto aquilo que o presente nos dá a conhecer são sobretudo túmulos selados: os túmulos das nossas desilusões, amarguras e difidência, os túmulos do «não há mais nada a fazer», «as coisas não mudarão jamais», «melhor gozar o dia a dia» porque «do amanhã não estamos seguros». Também nós, se fomos amofinados pela dor, oprimidos pela tristeza, humilhados pelo pecado, amargurados por algum fracasso ou pressionados por alguma preocupação, experimentamos o gosto amargo do cansaço e vimos a alegria apagar-se no coração.

Às vezes notamos simplesmente o peso de levar por diante a vida quotidiana, cansados de arriscar pessoalmente contra uma espécie de muro de borracha dum mundo onde parecem prevalecer sempre as leis do mais astuto e do mais forte. Outras vezes sentimo-nos impotentes e desanimados perante o poder do mal, os conflitos que dilaceram as relações, as lógicas feitas de cálculo e indiferença que parecem governar a sociedade, o câncer da corrupção – e há tanta –, a propagação da injustiça, os ventos gélidos da guerra. Mais ainda, talvez nos tenhamos defrontado com a morte, ao roubar-nos a doce presença dos nossos queridos ou roçar-nos por um triz na doença ou nas calamidades, e facilmente caímos vítimas da desilusão e secou a fonte da esperança. Assim, por estas ou outras situações – cada um de nós conhece as suas –, os nossos caminhos detêm-se perante túmulos e nós ficamos imóveis a chorar e lamentar-nos, repetindo, sozinhos e impotentes, os nossos «porquês». Aquela cadeia de «porquês»...

Ao contrário, as mulheres na Páscoa não ficam paralisadas diante dum túmulo, mas – diz o Evangelho – «afastando-se rapidamente do sepulcro, cheias de temor e grande alegria, as mulheres correram a dar a notícia aos discípulos» (28, 8). Levam a notícia que mudará para sempre a vida e a história: Cristo ressuscitou! (28, 6). E, ao mesmo tempo guardam e transmitem a recomendação do Senhor, o seu convite aos discípulos, ou seja, que partam para a Galileia, porque lá O verão (cf. 28, 7). Mas, irmãos e irmãs, perguntamo-nos hoje: que significa ir para a Galileia? Duas coisas: a primeira, sair da clausura do Cenáculo partindo para a região habitada pelos gentios (cf. Mt 4, 15), sair do escondimento para se abrir à missão, escapar do medo para caminhar rumo ao futuro. A segunda – e isto é maravilhoso –, voltar às origens, porque precisamente na Galileia é que tudo começara. Lá o Senhor encontrara e chamara pela primeira vez os discípulos. Portanto, ir para a Galileia é voltar à graça primordial, é readquirir a memória que regenera a esperança, a «memória do futuro» com que fomos marcados pelo Ressuscitado.

Vemos assim o que faz a Páscoa do Senhor: impele-nos a seguir em frente, sair da sensação de derrota, rolar a pedra dos sepulcros onde muitas vezes encerramos a esperança, olhar o futuro com confiança, porque Cristo ressuscitou e mudou a direção da história; mas, para o conseguir, a Páscoa do Senhor leva-nos ao nosso passado de graça, faz-nos regressar à Galileia, onde teve início a nossa história de amor com Jesus, onde ocorreu o primeiro chamamento. Por outras palavras, pede-nos para reviver o momento, a situação, a experiência em que encontramos o Senhor, experimentamos o seu amor e recebemos um olhar novo e luminoso sobre nós mesmos, sobre a realidade, sobre o mistério da vida. Irmãos e irmãs, para ressuscitar, recomeçar, retomar o caminho, precisamos sempre de voltar à Galileia, isto é, voltar, não a um Jesus abstrato, ideal, mas à memória viva, à memória concreta e palpitante do primeiro encontro com Ele. Sim, para caminhar devemos recordar; para ter esperança devemos nutrir a memória. E este é o convite: recorda e caminha! Se recuperares o primeiro amor, o deslumbramento e a alegria do encontro com Deus, seguirás para a frente. Recorda e caminha.

Recorda a tua Galileia, e caminha para a tua Galileia. É o «lugar» onde conheceste pessoalmente Jesus, onde Ele deixou de ser, para ti, uma personagem histórica como outras, tornando-Se a pessoa da tua vida: não um Deus distante, mas o Deus próximo, que te conhece melhor do que ninguém e te ama mais do que qualquer outra pessoa. Irmão, irmã, traz à memória a Galileia, a tua Galileia: a Galileia da tua chamada, daquela Palavra de Deus que, num momento concreto, foi dirigida precisamente a ti; daquela forte experiência no Espírito, da maior alegria do perdão sentida depois daquela Confissão, daquele momento intenso e inesquecível de oração, daquela luz que se acendeu no teu íntimo e transformou a tua vida, daquele encontro, daquela peregrinação, etc. Cada um de nós sabe onde se encontra a sua Galileia, cada um de nós conhece o próprio lugar da ressurreição interior, lugar inicial, fundante, que mudou as coisas. Não podemos deixá-lo no passado, o Ressuscitado convida-nos a ir até lá, para celebrar a Páscoa. Recorda a tua Galileia, trá-la à memória, reaviva-a hoje mesmo. Volta àquele primeiro encontro. Interroga-te como e quando foi, reconstrói o seu contexto, tempo e lugar, repassa a emoção e as sensações, revive as suas cores e sabores. Com efeito, tu sabes, foi quando esqueceste aquele primeiro amor, quando olvidaste aquele primeiro encontro que começou a depositar-se o pó no teu coração. E experimentaste a tristeza e, como para os discípulos, tudo parecia carecido de perspetiva, com um rochedo selando a esperança. Mas hoje, irmão, irmã, a força da Páscoa convida a rolar para fora as pedras da desilusão e da desconfiança; o Senhor, perito em derrubar as pedras tumulares do pecado e do medo, quer iluminar a tua memória santa, a tua recordação mais bela, tornar atual aquele primeiro encontro com Ele. Recorda e caminha: volta para Ele, redescobre a graça da ressurreição de Deus em ti! Volta à Galileia, volta à tua Galileia.

Irmãos, irmãs, sigamos Jesus até à Galileia, encontremo-Lo e adoremo-Lo lá onde Ele espera cada um de nós. Revivamos a beleza daquele momento em que, depois de O ter descoberto vivo, O proclamamos Senhor da nossa vida. Voltemos à Galileia, à Galileia do primeiro amor, cada um volte à sua própria Galileia, a do primeiro encontro, e ressurjamos para uma vida nova!


Domingo de Páscoa, 9 de abril de 2023

Bênção Urbi et Orbi

Queridos irmãos e irmãs, Cristo ressuscitou!

Hoje proclamamos que Ele, o Senhor da nossa vida, é «a ressurreição e a vida» (Jo 11, 25) do mundo. É Páscoa, que significa «passagem», porque, em Jesus, realizou-se a passagem decisiva da humanidade, ou seja, a passagem da morte à vida, do pecado à graça, do medo à confiança, da desolação à comunhão. N’Ele, Senhor do tempo e da história, quero, com o coração repleto de alegria, dizer a todos: feliz Páscoa!

Seja ela para cada um de vós, queridos irmãos e irmãs, em particular para os doentes e os pobres, os idosos e quantos atravessam momentos de provação e dificuldade, uma passagem da tribulação à consolação. Não estamos sozinhos: Jesus, o Vivente, está connosco para sempre. Alegrem-se a Igreja e o mundo, porque hoje as nossas esperanças já não se quebram contra o muro da morte, mas o Senhor abriu-nos uma ponte para a vida. Sim, irmãos e irmãs! Na Páscoa, mudaram as sortes do mundo, e hoje (dia que coincide com a data mais provável da ressurreição de Cristo) podemos alegrar-nos de celebrar, por pura graça, o dia mais importante e belo da história.

Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente: como se proclama nas Igrejas do Oriente. O termo verdadeiramente diz-nos que a esperança não é uma ilusão; é verdade! E que, a partir da Páscoa, o caminho da humanidade assinalado pela esperança é percorrido com passo mais rápido. Assim no-lo mostram, com o seu exemplo, as primeiras testemunhas da Ressurreição. Os Evangelhos narram aquela pressa boa com que, no dia de Páscoa, «as mulheres correram a dar a notícia aos discípulos» (Mt 28, 8). E ainda que Maria de Magdala, «correndo, foi ter com Simão Pedro» (Jo 20, 2); e em seguida João e o próprio Pedro «corriam os dois juntos» (20, 4) para chegar ao lugar onde Jesus estivera sepultado. E ao entardecer daquele dia de Páscoa, depois de terem encontrado o Ressuscitado no caminho para Emaús, os dois discípulos «voltaram imediatamente para Jerusalém» (Lc 24, 33) percorrendo a toda a pressa vários quilómetros em subida e na escuridão da noite, movidos pela alegria irrefreável da Páscoa que inflamava os seus corações (cf. 24, 32). A mesma alegria pela qual Pedro, ao ver Jesus ressuscitado nas margens do lago da Galileia, não pôde demorar-se no barco com os outros, mas lançou-se logo à água nadando velozmente ao encontro d’Ele (cf. Jo 21, 7). Em suma, na Páscoa, acelera-se o passo na caminhada que se torna uma corrida, porque a humanidade vê a meta do seu percurso, o sentido do seu destino, Jesus Cristo, e é chamada a apressar-se ao encontro d’Ele, esperança do mundo.

Apressemo-nos, também nós, a crescer num caminho de confiança recíproca: confiança entre as pessoas, entre os povos e as nações. Deixemo-nos surpreender pelo anúncio feliz da Páscoa, pela luz que ilumina as trevas e obscuridades em que demasiadas vezes se encontra envolvido o mundo.

Apressemo-nos a superar os conflitos e as divisões, e a abrir os nossos corações aos mais necessitados. Apressemo-nos a percorrer sendas de paz e fraternidade. Alegremo-nos com os sinais concretos de esperança que nos chegam de tantos países, a começar daqueles que oferecem assistência e hospitalidade a quantos fogem da guerra e da pobreza.

Entretanto, ao longo do caminho, há ainda muitas pedras de tropeço, que tornam árduo e fadigoso este apressarmo-nos para o Ressuscitado. Supliquemos-Lhe: Ajudai-nos a correr ao vosso encontro! Ajudai-nos a abrir os nossos corações!

Ajudai o amado povo ucraniano no caminho para a paz, e derramai a luz pascal sobre o povo russo. Confortai os feridos e quantos perderam os seus entes queridos por causa da guerra e fazei que os prisioneiros possam voltar sãos e salvos para as suas famílias. Abri os corações de toda a Comunidade Internacional para que se esforcem por fazer cessar esta guerra e todos os conflitos que ensanguentam o mundo, a começar pela Síria, que ainda espera a paz. Sustentai quantos foram atingidos pelo violento terremoto na Turquia e na própria Síria. Rezemos por aqueles que perderam familiares e amigos e ficaram sem casa: possam receber conforto de Deus e ajuda da família das nações.

Neste dia confiamo-Vos, Senhor, a cidade de Jerusalém, primeira testemunha da vossa Ressurreição. Expresso profunda preocupação com os ataques dos últimos dias que ameaçam o desejado clima de confiança e respeito mútuo, necessário para se retomar o diálogo entre israelenses e palestinos, de modo que a paz reine na Cidade Santa e em toda a região.

Ajudai, Senhor, o Líbano, ainda à procura de estabilidade e unidade, para que supere as divisões e todos os cidadãos trabalhem, juntos, pelo bem comum do país.

Não Vos esqueçais do querido povo da Tunísia, especialmente dos jovens e daqueles que sofrem por causa dos problemas sociais e económicos, a fim de não perder a esperança e colaborar na construção dum futuro de paz e fraternidade.

Olhai para o Haiti, que há vários anos está a sofrer uma grave crise sociopolítica e humanitária, e sustentai o empenho dos atores políticos e da Comunidade Internacional na busca duma solução definitiva para os inúmeros problemas que afligem aquela população tão atribulada.

Consolidai os processos de paz e reconciliação empreendidos na Etiópia e no Sudão do Sul e fazei cessar as violências na República Democrática do Congo.

Sustentai, Senhor, as comunidades cristãs que hoje celebram a Páscoa em circunstâncias particulares, como sucede na Nicarágua e na Eritreia, e lembrai-Vos de todos aqueles a quem é impedido professar, livre e publicamente, a sua fé. Dai conforto às vítimas do terrorismo internacional, especialmente no Burkina Faso, Mali, Moçambique e Nigéria.

Ajudai o Myanmar a percorrer caminhos de paz e iluminai os corações dos responsáveis para que o martirizado povo roynga encontre justiça.

Confortai os refugiados, os deportados, os prisioneiros políticos e os migrantes, especialmente os mais vulneráveis, bem como todos aqueles que sofrem com a fome, a pobreza e os efeitos nocivos do narcotráfico, do tráfico de pessoas e de toda a forma de escravidão. Inspirai, Senhor, os responsáveis das nações, para que nenhum homem ou mulher seja discriminado e espezinhado na sua dignidade; para que, no pleno respeito dos direitos humanos e da democracia, se curem estas chagas sociais, se procure sempre e só o bem comum dos cidadãos, se garanta a segurança e as condições necessárias para o diálogo e a convivência pacífica.

Irmãos, irmãs, voltemos também nós a encontrar o gosto do caminho, aceleremos o pulsar da esperança, saboreemos a beleza do Céu! Tiremos deste Dia as energias para continuar ao encontro do Bem que não desilude. E, se «o maior pecado – como escreveu um antigo Padre – é não acreditar nas energias da Ressurreição» (Santo Isaac de Nínive, Sermões ascéticos, I, 5), hoje acreditemos! «Sim, temos a certeza: verdadeiramente Cristo ressuscitou» (Sequência). Acreditamos em Vós, Senhor Jesus, acreditamos que convosco renasce a esperança, o caminho continua. Vós, Senhor da vida, encorajai os nossos caminhos e repeti, também a nós, como aos discípulos na noite de Páscoa: «A paz esteja convosco» (Jo 20, 19.21).